Últimas Notícias

Programa Mãe Legal completa 12 anos acolhendo mulheres que manifestem a intenção de entregar seu bebê para adoção

Mosaico de fotos mostra a participação de homens e mulheres em reunião online

Há 12 anos, o Programa Mãe Legal, implantado de forma pioneira pela 2ª Vara da Infância e Juventude do Recife (2ª VIJ), vem garantindo às mulheres que não desejam ficar com seus bebês o direito de entregá-los para adoção de forma segura e responsável. Para comemorar a data, foi promovido, na terça-feira (26/10), o webinário “Programa Mãe legal: 12 anos quebrando paradigmas”. Em parceria com a Coordenação Municipal de Saúde da Mulher e a Escola de Saúde do Recife (ESR/SEGTES), o evento discutiu questões que permeiam o contexto dessa entrega responsável de recém-nascidos na capital pernambucana.

Abrindo as apresentações, o juiz titular da 2ª VIJ, Élio Braz, falou sobre os diversos aspectos que abrangem o tema e fez um breve histórico desde a implantação do Programa Mãe Legal, em outubro de 2009. “O nosso primeiro desejo, quando começamos a discutir a necessidade de um serviço voltado para a mulher que não deseja ser mãe, surgiu por volta do ano de 2006, quando nós recebíamos essas mulheres e não sabíamos como cuidar delas, ficava um vazio na prestação do serviço. Aos poucos, fomos percebendo que era necessário termos um olhar diferenciado e essas escutas é que foram construindo, ao longo dos anos, o caminho que nós percorremos. Foram elas que criaram esses caminhos, quando muitas vezes nós não sabíamos o que fazer”, lembrou o magistrado. 

A primeira vez que a legislação mencionou a manifestação do interesse de gestantes e mães em entregar os filhos para adoção foi através da Lei 12.010/2009, em seu Art. 13, que determinava o encaminhamento obrigatório delas à Justiça da Infância e Juventude, mas sem especificar a metodologia que deveria ser aplicada. “Nós nos agarramos a uma interpretação extensiva junto ao Ministério Público e à Defensoria Pública, que foram de vital importância na organização dessa nossa forma de trabalhar, sempre com a perspectiva de abertura para as outras instituições”, explicou Élio Braz. 

Após 12 anos de implantação e com mais de 350 mulheres atendidas, o juiz falou sobre a construção de um fluxo de trabalho que hoje é seguido por Tribunais de todo o país. “A legislação atual adotou a nossa metodologia, os dispositivos contidos no Estatuto da Criança e do Adolescente reproduziram o que nós fazíamos aqui e isso nos orgulha muito. É realmente um momento de comemoração, o país inteiro passou a nos ouvir e até hoje somos convidados para levar nossa experiência a vários estados. Toda a nossa equipe está envolvida com o Programa e temos profissionais altamente capacitados e integrados com o propósito. Há um fluxo estabelecido no cuidado e na proteção dessas mulheres em toda a rede de proteção”, concluiu.

Em seguida, a juíza substituta da 2ª VIJ, Hélia Viegas, reforçou que no Recife, mesmo antes do marco oficial da entrega responsável já se fazia o acolhimento às mulheres que manifestavam o desejo de não ficar com a criança. “O Mãe Legal representa uma quebra de paradigma na nossa sociedade e o Estatuto legitimou uma mudança nessa visão muitas vezes patriarcal, uma visão distorcida do que é a maternidade, possibilitando a desconstrução do mito de que a maternagem* é inata à mulher. A equipe da 2ª Vara já tinha essa visão muito antes da vigência da Lei. É fundamental termos esse atendimento acolhedor, desvinculado de valores morais e religiosos, já que nosso estado é laico e nós temos que prestar um atendimento desvinculado desses conceitos para garantir que as mulheres tenham a livre decisão do exercício da maternagem”, enfatizou a magistrada. 

Ela explicou que a decisão de entregar o bebê é tomada inicialmente pela mulher, podendo ser estendida caso ela manifeste o desejo de incluir no processo o genitor ou a família extensa. Nesses casos, eles também serão ouvidos pela equipe multidisciplinar e conhecerão as consequências legais da decisão, sendo uma delas a impossibilidade de revogação da extinção do poder familiar sobre a criança. Quando a entrega é confirmada em juízo, após cumpridos todos os critérios, a criança é disponibilizada para ser adotada por uma nova família através do Sistema Nacional de Adoção (SNA). Em nenhuma fase do processo é necessária a representação por advogado.

“O nosso desafio é consolidar cada vez mais a ideia de que a entrega responsável não é abandono, pelo contrário, é um ato que, acima de tudo, visa a proteger aquela criança e garantir que ela tenha uma família motivada e em condições de garantir o seu desenvolvimento pleno, sua integridade física e mental ”, finalizou Hélia Viegas.

A manifestação do desejo de não exercer a maternagem pode acontecer durante a gravidez ou em até 45 dias após o parto. Na maioria dos casos, a porta de entrada dessas mulheres no Programa Mãe Legal acontece através das maternidades, por ocasião do nascimento, e Unidades de Saúde, ainda no pré-natal. Nos dois últimos anos, 71% das mulheres foram encaminhadas ao Programa pelas maternidades, que representaram uma importante parceria para o Judiciário desde o início da pandemia, já que a Justiça teve de suspender os atendimentos presenciais, passando a realizar todo o trabalho de acompanhamento de forma remota. 

O papel da rede de saúde no acolhimento e encaminhamento das mulheres ao Poder Judiciário foi o tema abordado pela coordenadora da Política de Saúde da Mulher do Recife, Mariana Seabra. “Sabemos que a escolha do maternar não é para todas. Essa é uma realidade que a gente precisa trazer sempre em mente, inclusive enquanto profissionais da Atenção Básica, e temos reforçado isso em alguns dos nossos fluxos de trabalho. Hoje sabemos que 55% das gestações no Brasil são indesejadas e esse dado é central para essa discussão que estabelecemos aqui”, salientou. 

A profissional falou ainda sobre a eficácia dos métodos anticoncepcionais e a questão da responsabilidade por seu uso ser atribuída apenas à mulher. Gravidez na adolescência, cultura do estupro, inclusive marital, e cultura do abandono paterno foram outros temas trazidos em sua apresentação. A Coordenação disponibiliza na internet um protocolo de direitos das mulheres e das gestantes, com informações sobre o direito à acompanhante, Lei da Gestante, amamentação, violência obstétrica, entre outros temas. 

Números na pandemia – A partir de 2020 foi possível verificar uma mudança no perfil das mulheres que decidiram pela entrega de seus bebês. Nos 10 primeiros anos do Programa, a maioria não havia terminado o Ensino Fundamental. Em 2020 e 2021, a predominância é daquelas que possuem o Ensino Médio Completo, representando 70% dos casos. A permanência das crianças em suas famílias de origem era o desfecho observado na maioria dos casos até o início da pandemia. De março de 2020 em diante, observou-se que houve um percentual menor de mulheres que desistiram da entrega no decorrer do acompanhamento. 

Em relação à faixa etária, 63% das mulheres têm entre 19 e 29 anos de idade; 22% possuem entre 30 e 39 anos; 11% já passaram dos 40 anos de idade e 4% são adolescentes na faixa dos 12 aos 17 anos. Muitas dessas mulheres estão desempregadas, sem assistência financeira de suas famílias e, na maioria das vezes, sem o apoio nem o reconhecimento da paternidade por parte do genitor da criança, constituindo-se como os principais motivadores para a entrega. Em 79% dos atendimentos, as mulheres já tinham tido filhos anteriormente e 78% delas já haviam feito a entrega anterior de outro bebê.

Quadro em tela com a frase "Só o sujeito pode nomear de que lugar faz sua escolha e, para isso, ele precisa ser escutado"

Fatores psicossociais – Profissionais das equipes multidisciplinares da Segunda Vara da Infância e Juventude do Recife trouxeram as variantes sociais e psicológicas que permeiam a vida de uma mulher e a decisão dela de entregar seu filho recém-nascido para adoção. A psicóloga e coordenadora do Programa Mãe Legal, Ana Cláudia Souza, falou sobre as diversas narrativas que se apresentam durante o acompanhamento e a escuta dessas mulheres, mostrando as angústias, sofrimentos, lutas e singularidades trazidas por cada uma delas e como esses fatores resultam no desejo de entrega das crianças. Ana Cláudia pontuou em sua fala a importância do não julgamento, da ética, do reconhecimento dos limites e da intervenção mínima dos profissionais na decisão e mostrou casos que tiveram como fatores determinantes a violência sexual, o luto, os acordos da conjugalidade, o empoderamento feminino e a ausência de laços familiares.

As nuances da colocação de um bebê em família adotiva foram tratadas na participação da assistente social do Núcleo de Apoio ao Cadastro Nacional de Adoção (NACNA), Eleni Munguba. A profissional apontou que o Cadastro Nacional de Adoção é uma ferramenta fundamental em que se busca encontrar famílias para as crianças e não crianças para as famílias, o que significa que são priorizados sempre os interesses dos menores. 

Eleni explicou porque a entrega do bebê para adoção é considerada uma atitude responsável e consciente por parte da mãe e/ou família natural: “Responsável porque não colocará o bebê em risco e consciente porque são informadas de seus direitos, obrigações e consequências jurídicas”, esclareceu. Os mitos que ainda envolvem a adoção, o preconceito da sociedade, o trabalho desenvolvido para quebrar essa mentalidade e a preparação das famílias também foram pontos levantados pela assistente social. 

Encerrando as discussões, a psicóloga e pesquisadora Edineide Silva trouxe um olhar sobre as motivações da entrega sob o ponto de vista da psicanálise, considerando aspectos como o momento cultural e histórico que a mulher está inserida naquele momento, as facetas de cada situação e a ambivalência dos sentimentos vivenciados. Para Edineide, o desejo da mulher em não conviver com a filha ou o filho está permeado muitas vezes por suas próprias experiências infantis. “Se a gente pensar um pouco nesse evento da entrega, a gente chega ao ponto de questionar o que é que não aconteceu para que ela não queira seguir com essa criança. Tem algumas facetas dessa entrega que nos ajudam a perceber que não terá uma resposta única, mas terão muitas possibilidades que farão com que ela estabeleça ou não um laço com essa criança”, refletiu.

Programa Mãe Legal - É  executado pelo Núcleo de Curadoria Especial e Proteção à Família- NUCE, da  2ª Vara da Infância e Juventude da Capital em  parceria com as Secretarias de Saúde, da Mulher e do Desenvolvimento Social e Direitos Humanos do município do Recife, o Ministério Público de Pernambuco (MPPE), a Defensoria Pública de Pernambuco (DPPE), as Maternidades públicas e privadas do município, ONG’s,  Instituições de Acolhimento e Conselhos Tutelares.


*maternagem - condição estabelecida no vínculo afetivo do cuidado e acolhimento ao filho por uma mãe.

 

...................................................................................................................
Texto e imagens: Amanda Machado - Ascom TJPE