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Proposta de Enunciado Administrativo

 PROPOSTA DE ENUNCIADO ADMINISTRATIVO

 

Desembargador JORGE AMÉRICO PEREIRA DE LIRA

 

I. Relatório

 

1.1.      A presente proposta de Enunciado foi movida pela necessidade de dar resposta uniforme a demandas relacionadas à Resolução do Tribunal de Contas do Estado de Pernambuco nº 119, de 16 de dezembro de 2020, especialmente em razão da interposição de milhares de Apelações, ao final de fevereiro de 2022, pelo Município de Vitória de Santo Antão, o que, potencialmente, pode ser reproduzido pelas Procuradorias de outros 180 municípios pernambucanos.

 

1.2.      Cabe sublinhar que as referidas Apelações foram interpostas em face das sentenças proferidas em massa pelo Juízo da 2ª Vara Cível da Comarca de Vitória de Santo Antão, em ordem a determinar o arquivamento compulsório de Execuções Fiscais, sob o fundamento único de que o Município “não observou os critérios e requisitos da Resolução TCE n. 119, de 16 de dezembro de 2020”.

 

1.3.      Eis, a propósito, os fundamentos utilizados em uma das sentenças recorridas, cujo texto é reproduzido, sem alterações, nos diversos feitos executivos fiscais em referência:

 

“(…) Cuida-se de execução fiscal ajuizada pelo Município de Vitória de Santo Antão, protocolada após a edição da Resolução TCE nº 119, de 16.12.2020.

Acompanha a execução fiscal tão somente a certidão de dívida ativa.

A Resolução TCE nº 119, de 16.12.2020 estabelece critérios e diretrizes para conferir maior eficiência na constituição, na inscrição, na recuperação dos créditos públicos e no ajuizamento de execuções fiscais pelos Municípios.

Em seu art.1º a referida resolução aduz que:” Esta Resolução dispõe sobre os procedimentos a serem observados pelos Municípios na constituição, na inscrição e na recuperação dos créditos públicos, por meio de cobrança extrajudicial e de ajuizamento de execuções fiscais”.

Em relação a execução fiscal previu o art. 6ª e seus incisos que:

Art. 6º. Na execução do crédito fiscal, de naturezas tributária e não tributária, deve-se:

I – proceder anualmente à distribuição de ações de execução fiscal;

II – juntar em um único processo todas as dívidas do mesmo contribuinte, inclusive as de parcelamentos não cumpridos e autos de infração ou lançamento de tributo, executando-as até o quarto ano do prazo prescricional da dívida mais antiga, de modo a reduzir o número de processos referentes a dívidas de tributos lançados em massa;

III – implantar e implementar instrumento normativo (Instrução Normativa, Ordem de Serviço, Decreto, dentre outros) descrevendo os procedimentos a serem observados com vistas a qualificar os débitos inscritos nas Certidões de Dívida Ativa (CDAs) antes do ajuizamento da execução fiscal;

IV – implantar ferramenta no sistema de arrecadação que permita o agrupamento de dívidas de um mesmo devedor em uma única CDA;

V – protestar o crédito inscrito em certidão de dívida ativa antes de promover o ajuizamento da ação de execução fiscal, já que esta atividade é menos onerosa aos cofres públicos, mais célere e bastante eficaz;

VI – inscrever o nome do devedor em cadastros restritivos de crédito;

VII – promover mesa permanente de negociação fiscal;

VIII – nas dívidas de natureza tributária, apenas ajuizar as execuções fiscais de valor igual ou superior ao que for estabelecido como piso antieconômico por Lei ou Decreto, devendo-se levar em consideração, para sua fixação, a realidade socioeconômica de cada ente, a natureza do crédito tributário e o custo unitário de um processo de execução fiscal encontrado pelo estudo do IPEA em colaboração com o CNJ em 2011, aplicada a correção monetária para atualização do valor em cada exercício; e

IX – estabelecer um mecanismo de controle e acompanhamento das execuções fiscais por intermédio do sistema informatizado, de forma a dar andamento tempestivo aos processos e evitar sua extinção por negligência.

§ 1º A não-observância aos procedimentos de execução fiscal estabelecidos neste artigo serão considerados atos antieconômicos, podendo caracterizar desperdício do dinheiro público e a correspondente apuração de infração.

§ 2º Para fins do inciso II deste artigo, a unidade deverá providenciar até o final do ano 2021 (ano X) a execução das dívidas relativas aos tributos de ano-base 2018 (ano X menos 3) e, apenas para esses devedores de 2018 (ano X menos 3), juntando os eventuais débitos dos anos-base 2019 (ano X menos 2 anos) e 2020 (ano X menos 1 ano).

§ 3º O disposto no § 2º deve ser aplicado nos anos subsequentes. 

§ 4º Para fins do inciso VIII deste artigo, deve-se expedir Lei ou Decreto que disponha sobre o piso mínimo de ajuizamento das execuções fiscais no prazo de até 180 (cento e oitenta dias), contados da data de publicação desta Resolução, sob pena de aplicação de multa prevista no artigo 73 da Lei Estadual 12.600, de 14 de junho de 2004.

§ 5º Os entes deverão informar ao TCE-PE o valor dos pisos mínimos legalmente fixados, sob pena de utilização, para fins de admissibilidade processual, dos valores definidos nos termos do § 6º deste artigo.

§ 6º Na ausência de Lei ou Decreto previsto no § 4º deste artigo, será considerado o valor fixado no Anexo Único desta Resolução.

§ 7º O TCE-PE publicará, no seu sítio eletrônico, as informações de que trata o § 5º e, quando necessário, atualizará o Anexo Único desta Resolução.

Art. 7º A presente Resolução entra em vigor na data de sua publicação, produzindo efeitos a partir do dia 1º de março de 2021, à exceção do disposto no § 4º do artigo 6º, que produzirá efeito imediato.

Veja-se que o artigo supra referido não deixa margem de interpretação quanto a sua obrigatoriedade e observância pelos Municípios ao utilizar o verbo “deve-se”.

Na presente execução fiscal o Município não faz sequer menção ao cumprimento dos requisitos previstos no art. 6º da Resolução TCE nº 119, de 16.12.2020. Continua a protocolar as execuções fiscais como sempre o fez, somente com a juntada da certidão da dívida ativa. Veja-se que das 1.581 execuções fiscais interpostas pelo Município de Vitória de Santo Antão no ano de 2021, 82% dos feitos nem o piso mínimo de R$ 3.000,00 (na ausência de lei editada este ano, conforme parágrafo § 4º, do art.6º, da Resolução) foi observado pela municipalidade.  

E não foi por falta de aviso prévio.

O Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco, atento a Resolução TCE nº 119, de 16.12.2020, editou a Instrução Normativa nº 02, de 27 de janeiro de 2021, na qual determinou expressamente:

Art. 1º Fixar os procedimentos obrigatórios que deverão ser observados, no âmbito do TJPE, quando da constituição, da inscrição, da recuperação dos créditos públicos e do ajuizamento das ações fiscais.

Art. 2º Orientar os Senhores Magistrados do Poder Judiciário Estadual, com competência para processar e julgar ações de execuções fiscais estaduais e municipais, no seguinte sentido:

I - que seja verificado se os exequentes observaram os critérios e requisitos da Resolução TCE n. 119, de 16 de dezembro de 2020.

II - apenas ocorrerá o regular processamento das ações de execução fiscal quando atendidos os critérios e requisitos da Resolução TCE n. 119, de 2020.

III - caso seja constatada a desobediência às determinações previstas no art. 6º, incisos II, V, VI, VIII e §1º, da Resolução TCE n. 119, de 2020, em qualquer fase do processo, expeçam ofício ao Tribunal de Contas do Estado, informando sobre o descumprimento.

Art. 3º Esta Instrução Normativa entra em vigor na data de sua publicação.

Em 15.02.2021, este juízo encaminhou ofício próprio (Ofício GAB. 02/2021) diretamente a Procuradoria Municipal comunicando da edição da Resolução TCE nº 119, de 16.12.2020 e da Instrução Normativa TJPE nº 02/2021 de 27.01.2021, encaminhando-lhe cópia e ressaltando expressamente que seguiria estritamente os termos ali consignados. Ou seja, não pode a Procuradoria Municipal, órgão competente para a interposição de execuções fiscais municipais, afirmar que desconhecia ou até que não foi comunicada previamente do surgimento desses atos normativos de cumprimento obrigatório para as execuções ajuizadas em 2021.

Vale ressaltar que os referidos normativos, e não este juízo, já trazem a consequência dirigida ao exequente em caso de seu descumprimento. Os atos trouxeram as expressões “não processamento das execuções fiscais” e “admissibilidade processual”.

No meu entender, numa interpretação literal e teleológica (finalidade da norma) dos dispositivos, o não processamento e a falta de admissibilidade processual equivalem ao arquivamento imediato dos feitos executivos que, no ato de sua interposição, não atendam aos requisitos da Resolução TCE n. 119, de 16 de dezembro de 2020.

Evidente que o exequente Município de Vitória de Santo Antão não observou os critérios e requisitos da Resolução TCE n. 119, de 16 de dezembro de 2020, em relação a presente execução, assim, determino o seu imediato arquivamento.

Por fim, tendo em vista o art. 2, III, da Instrução Normativa nº 02, de 27 de janeiro de 2021, deve a secretaria expedir um único ofício dirigido ao Tribunal de Contas do Estado, informando-lhe que o Município de Vitória de Santo Antão não cumpriu às determinações previstas no art. 6º, incisos II, V, VI, VIII e §1º, da Resolução TCE n. 119, de 2020. Junto ao ofício deve seguir cópia da sentença”.

 

1.4.      Em suas razões recursais, o Município apelante, em síntese, pugna pela declaração da “inconstitucionalidade da Resolução nº 119, de 16 de dezembro de 2020, diante da patente exorbitância do poder regulamentar do Tribunal de Contas do Estado que, apesar de dever se limitar, estritamente, às suas atribuições de cunho fiscalizatório, resolveu inovar no cenário processual pátrio, criando requisitos para o ajuizamento das certidões da dívida ativa, regularmente constituídas pelos Municípios do Estado de Pernambuco, que extrapolam àqueles previstos pela norma legal e constitucional vigentes. Ao editar resolução com conteúdo tão inovador no cenário jurídico pátrio, acabou por ferir frontalmente os seguintes artigos da Constituição Federal de 1988: art. 5, XXXV e LIV; art. 18, caput.”

 

Argumenta o Município recorrente, além disso, que foi surpreendido com “milhares de sentenças com o mesmo teor, proferidas em cerca de 1.581 execuções fiscais, promovendo o ‘imediato arquivamento’ ante a inobservância por parte desta Municipalidade dos termos da Resolução nº 119/2020, do Tribunal de Contas do Estado de Pernambuco, especificamente, do seu art. 6º”, de modo que a “interposição de apelações em todos esses autos, de todos os Municípios, atingidos pela Resolução do TCE, irá criar um verdadeiro ‘tsunami’ de recursos, que irão fazer com que tais execuções fiscais migrem do primeiro para o segundo grau, imediatamente”.

 

1.5.      Há, de fato, quantidade significativa de feitos, todos sentenciados com base na mesma Resolução do TCE nº 119, de 16 de dezembro de 2020, afigurando-se inegável o risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica se não houver uma resposta uniforme do Poder Judiciário. Além disso, a questão possivelmente se repetirá nos demais Municípios, e não apenas em Vitória de Santo Antão.

 

1.6.      A solução da demanda parece exigir, a meu ver, o exame de dois aspectos fundamentais. Primeiro, a análise da constitucionalidade da Resolução do TCE nº 119, de 16 de dezembro de 2020. E, em segundo lugar, caso se entenda que a referida resolução está eivada, de fato, de inconstitucionalidade, será imprescindível analisar se é possível afastar a adoção do procedimento previsto no artigo 948 e seguintes do CPC/2015[1], ou seja, se é obrigatória a observância da cláusula de reserva de plenário para julgamento das referidas Apelações, interpostas em face das sentenças que promoveram o arquivamento de Execuções Fiscais com base na Resolução do TCE nº 119/2020.

 

II. Análise da (in)constitucionalidade da Resolução TCE nº 119/2020

 

2.1.      A Resolução TCE nº 119, de 16 de dezembro de 2020, alterada pela Resolução TCE nº 132, de 02 de junho de 2021, apresenta inegáveis vícios de inconstitucionalidade, como se explicará a seguir.

 

2.2.      Vejamos, por oportuno, o que estabelece o artigo primeiro da TCE nº 119/2020:

 

Art. 1º Esta Resolução dispõe sobre os procedimentos a serem observados pelos Municípios na constituição, na inscrição e na recuperação dos créditos públicos, por meio de cobrança extrajudicial e de ajuizamento de execuções fiscais. (Redação dada pela Resolução TC nº 132, de 02 de junho de 2021)

 

A referida Resolução define, desse modo, procedimentos a serem seguidos pelos Municípios para a constituição e cobrança de créditos públicos por meio de execuções fiscais, o que me parece, à toda evidência, o estabelecimento de normas de Direito Processual.

 

Ocorre que, como é sabido, de acordo com a redação do citado artigo 22, I, da CF/88, a competência para legislar acerca de Direito Processual é privativa da União. A Resolução vai, desse modo, muito além do que poderia ser eventualmente considerada mera regulamentação da fase administrativa que antecede o ajuizamento das execuções fiscais e inova no cenário processual, “estabelecendo condições da ação e pressupostos processuais não previstos na norma processual civil pátria”

 

Essa constatação revela-se ainda mais notória ao se analisar o artigo 6º da Resolução em comento, especialmente ao fixar requisito de “admissibilidade processual” em seu §5º:

Art. 6º Na execução do crédito fiscal, de naturezas tributária e não tributária, deve-se:

I proceder anualmente à distribuição de ações de execução fiscal;

II juntar em um único processo todas as dívidas do mesmo contribuinte, inclusive as de parcelamentos não cumpridos e autos de infração ou lançamento de tributo, executando-as até o quarto ano do prazo prescricional da dívida mais antiga, de modo a reduzir o número de processos referentes a dívidas de tributos lançados em massa;

III implantar e implementar instrumento normativo (Instrução Normativa, Ordem de Serviço, Decreto, dentre outros) descrevendo os procedimentos a serem observados com vistas a qualificar os débitos inscritos nas Certidões de Dívida Ativa (CDAs) antes do ajuizamento da execução fiscal;

IV implantar ferramenta no sistema de arrecadação que permita o agrupamento de dívidas de um mesmo devedor em uma única CDA;

V protestar o crédito inscrito em certidão de dívida ativa antes de promover o ajuizamento da ação de execução fiscal, já que esta atividade é menos onerosa aos cofres públicos, mais célere e bastante eficaz;

VI inscrever o nome do devedor em cadastros restritivos de crédito;

VII promover mesa permanente de negociação fiscal;

VIII nas dívidas de natureza tributária, apenas ajuizar as execuções fiscais de valor igual ou superior ao que for estabelecido como piso antieconômico por Lei ou Decreto, devendo-se levar em consideração, para sua fixação, a realidade sócio-econômica de cada ente, a natureza do crédito tributário e o custo unitário de um processo de execução fiscal encontrado pelo estudo do IPEA em colaboração com o CNJ em 2011, aplicada a correção monetária para atualização do valor em cada exercício; e

IX – estabelecer um mecanismo de controle e acompanhamento das execuções fiscais por intermédio do sistema informatizado, de forma a dar andamento tempestivo aos processos e evitar sua extinção por negligência.

§ 1º A não-observância aos procedimentos de execução fiscal estabelecidos neste artigo serão considerados atos antieconômicos, podendo caracterizar desperdício do dinheiro público e a correspondente apuração de infração.

§ 2º Para fins do inciso II deste artigo, a unidade deverá providenciar até o final do ano 2021 (ano X) a execução das dívidas relativas aos tributos de ano-base 2018 (ano X menos 3) e, apenas para esses devedores de 2018 (ano X menos 3), juntando os eventuais débitos dos anos-base 2019 (ano X menos 2 anos) e 2020 (ano X menos 1 ano).

§ 3º O disposto no § 2º deve ser aplicado nos anos subsequentes. 

§ 4º Para fins do inciso VIII deste artigo, deve-se expedir Lei ou Decreto que disponha sobre o piso mínimo de ajuizamento das execuções fiscais no prazo de até 180 (cento e oitenta dias), contados da data de publicação desta Resolução, sob pena de aplicação de multa prevista no artigo 73 da Lei Estadual 12.600, de 14 de junho de 2004.

§ 5º Os entes deverão informar ao TCE-PE o valor dos pisos mínimos legalmente fixados, sob pena de utilização, para fins de admissibilidade processual, dos valores definidos nos termos do § 6º deste artigo.

§ 6º Na ausência de Lei ou Decreto previsto no § 4º deste artigo, será considerado o valor fixado no Anexo Único desta Resolução.

§ 7º O TCE-PE publicará, no seu sítio eletrônico, as informações de que trata o § 5º e, quando necessário, atualizará o Anexo Único desta Resolução”.

 

Ora, todas as disposições constantes dos incisos e §§ 1º ao 4º do artigo 6º supratranscrito poderiam, perfeitamente, ser compreendidas como recomendações e orientações “dirigidas aos gestores, no âmbito de um processo fiscalizatório onde o TCE poderia, em tal hipótese, vir a exigir providências ‘nesse sentido’, sob pena de não aprovação de suas contas, por exemplo”, como muito bem resumido pelo Município de Vitória de Santo Antão. Configurariam tais medidas, dessa forma, mera recomendação, que poderiam, no caso de inobservância, dar azo à instauração de procedimento fiscalizatório e à eventual responsabilização do gestor.

 

No entanto, as disposições dos parágrafos §§ 5º e 6º excedem o poder de regulamentação e fiscalização do Tribunal de Contas do Estado, uma vez que fixam regras de “admissibilidade processual” e estabelecem “piso mínimo” para ajuizamento de execuções fiscais, o que, inegavelmente, limita o direito de ação dos Municípios e impõe novas regras de Direito Processual, extrapolando a competência atribuída ao Tribunal de Contas do Estado, órgão constitucional de controle externo.

 

Não se permite ao TCE, portanto, criar hipóteses que condicionem a instauração da execução fiscal, além daquelas previstas pelo Código de Processo Civil, pelo Código Tributário Nacional e pela Lei de Execução Fiscal, e é certo que, nestes diplomas, não há quaisquer limitações semelhantes àquelas estabelecidas pelo artigo 6º da Resolução ora em comento.

 

Portanto, resta configurado patente vício de inconstitucionalidade por usurpação da competência privativa da União Federal para legislar acerca de Direito Processual.

 

2.3.      Por sua vez, no que tange à competência do Tribunal de Contas do Estado, com efeito, lhe são atribuídos poderes de fiscalização, orientação e apreciação de contas do Estado e dos Municípios. Cumpre-lhe, pois, verificar a observância da “legalidade, legitimidade, economicidade, moralidade, impessoalidade, publicidade, aplicação de subvenções e renúncia de receitas, com vistas a assegurar a eficácia do controle que lhe compete, a instruir o julgamento de contas e a prestar à Assembléia Legislativa e às Câmaras Municipais o auxílio que estas solicitarem para o desempenho do controle externo a seu cargo, avaliando, ainda, sob o aspecto operacional, os órgãos, entidades, programas e projetos governamentais” (art. 3º da Lei Estadual nº 12.600/2004 – Lei Orgânica do TCE/PE).

           

O poder regulamentar do TCE/PE encontra-se exteriorizado, especialmente, nos artigos 4º, 56 e 102, XVIII, de sua Lei Orgânica:

Art. 4º Ao Tribunal de Contas do Estado, no âmbito de sua jurisdição, compete, ainda, expedir atos regulamentares sobre matéria de sua atribuição e sobre a organização dos processos que lhe devam ser submetidos.

(…)

Art. 56. Os atos administrativos do Tribunal de Contas consistirão em Resoluções e Portarias, sendo aquelas para regulamentar procedimentos de atribuições que alcancem seus jurisdicionados e estas para procedimentos administrativos.

(…)

Art. 102. Compete ao Pleno, originariamente:

(…)

XVIII - expedir Resoluções.

           

Tais disposições decorrem do artigo 71 da CF/88, aplicável aos Tribunais de Contas Estaduais por força do artigo 75 da CF/88, que traz elenco das atribuições que competem ao controle externo desempenhado pelo Tribunal de Contas, auxiliar do Poder Legislativo na função fiscalizatória, que é exercida pelo Tribunal, observe-se, apenas e tão somente com contornos técnicos e não políticos.

 

O Exmo. Min. Sepúlveda Pertence, citado por Jorge Ulisses Jacoby Fernandes, nesse sentido, salienta que:

 

“A jurisprudência do STF acolheu a nítida diferença que a jurisprudência dos
Tribunais de Contas estabelece entre a competência de apreciação do artigo 71, I,
das contas do Presidente da República e a competência de que falava a Constituição passada, de julgamento das contas de todos os demais responsáveis por dinheiros, bens e valores da Administração direta e indireta. Claramente se estabeleceu, em consequência, algo que me parece de grande relevo na caracterização do próprio perfil constitucional do Tribunal de Contas porque, diferentemente do que ocorre com as contas gerais da Presidência da República ou do Governo do Estado, as contas da Assembleia Legislativa e as contas do Poder Judiciário, assim como as do Ministério Público, são sujeitas a julgamento, vale dizer, a decisão definitiva do Tribunal de Contas”.[2]

           

Por sua vez, acerca do poder regulamentar, Francisco Sérgio Maia Alves esclarece, em citação do Exmo. Min. Luís Roberto Barroso, que:

 

“(…) o exercício do poder regulamentar pelo TCU deve ser interpretado conforme a Constituição. Segundo o Ministro do Supremo Tribunal Federal, o órgão de contas desfruta de competências normativas inferiores, e não do poder de editar regras gerais e abstratas. Para ele, o Tribunal não tem competência para editar regulamentos de execução, regulamentos autônomos, muito menos para invadir a esfera de reserva legal, com o fim de impor obrigações, estabelecer requisitos ou ditar vedações que não tenham apoio na lei (BARROSO, 2001, p. 239). Desse modo, o poder regulamentar do Tribunal restringe-se ao detalhamento do exercício de suas competências, como julgar contas, aplicar sanções, fiscalizar atos e contratos, dentre outras, e, por outro lado, à organização
de seus processos, ou seja, ao estabelecimento de suas normas procedimentais.”[3]

           

O mesmo autor, ao analisar o Acórdão 1.977/2013-TCU-Plenário, em que foram fixadas orientações acerca da uniformização de procedimentos para aplicação do regime de empreitada por preço global em obras públicas, destacou que o TCU, ao pretender sanar omissão constante da Lei de Licitações e Contratos, findou por extrapolar seu poder regulamentar:

 

“(…) Sem entrar no mérito das valorações técnicas adotadas na decisão e dos benefícios de sua atuação prospectiva, até porque, como visto, compete também ao TCU orientar a Administração Pública federal, entende-se que
o Tribunal, ao preencher lacuna legal fora do exame de casos concretos, extrapolou o limite permitido para o exercício da atividade de integração, conforme estabelecido pela Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro
(BRASIL, 1942). Nesse contexto, o Acórdão 1.977/2013-TCU-Plenário, pelo seu caráter genérico, assemelha-se a uma regra jurídica infralegal. Isso se mostra inapropriado, pois: primeiro, compete ao Presidente da República a função de regulamentar lei para a sua fiel execução; e, segundo, tal atividade não pode inovar no ordenamento jurídico, sob pena de violação do princípio da legalidade e do arranjo de distribuição de poderes da Constituição”[4].

 

Ainda sobre licitação, Roberto Ribeiro Bazilli pontua que não pode haver invasão de competência pelo Tribunal de Contas, senão vejamos:

 

“Com referência à licitação, obriga os órgãos ou entidades da Administração interessados à adoção das medidas corretivas e, a nosso ver, incide em inconstitucionalidade flagrante, pois que não cabe a um órgão do Poder Legislativo, o Tribunal de Contas, determinar a órgãos do outro Poder, o Executivo, a adoção de medidas que julga corretivas. Tal procedimento expressamente previsto na lei fere o princípio da separação dos Poderes. Compete – isto sim – ao Tribunal de Contas apontar, no exercício do controle externo, ao órgão ou entidade as incorreções existentes no edital. No entanto, ao órgão ou
entidade, cabe, a juízo próprio, aceitar ou não as medidas corretivas indicadas pelo Tribunal de Contas. Mesmo porque o Tribunal de Contas não é infalível, e seria uma temeridade a aceitação pura e simples desta ou daquela correção por provir de determinação do Tribunal de Contas.”[5]

 

2.4.      O mesmo raciocínio deve ser empregado no presente caso, de modo que as disposições constantes da Resolução TCE nº 119/2020 devem ser tomadas como meras recomendações e jamais como imposições e limitação ao direito de ação dos Municípios, sob pena de ofensa à separação dos Poderes.

 

Em síntese, como esclarece o Exmo. Min. Luís Roberto Barroso:

 

“(…) De fato, parece aceitável reconhecer-se ao Tribunal de Contas competência para editar atos normativos, administrativos, como seu Regimento Interno, ou para baixar uma resolução ou outros atos internos. Poderá igualmente expedir atos ordinatórios, como circulares, avisos, ordens de serviço. Nunca, porém, será legítima a produção de atos de efeitos externos geradores de direitos e obrigações para terceiros, notadamente quando dirigidos a órgãos constitucionais de outro poder. Situa-se ao arrepio da Constituição e foge inteiramente ao razoável o exercício, pelo Tribunal de Contas, de uma indevida competência regulamentar, equiparada ao executivo, ou mesmo em alguns casos de abuso mais explícito, de uma competência legislativa com inovações da ordem jurídica.”[6]

 

Verifica-se, portanto, vício de inconstitucionalidade por extrapolar o Tribunal de Contas do Estado as competências delimitadas pelos artigos 71 e 75 da CF/88, indo além de seu poder regulamentar.

 

2.5.      Como visto, não é dado ao TCE limitar o direito de ação (na acepção processual) dos Municípios, tampouco extrapolar seu poder regulamentar, sob pena de flagrante inconstitucionalidade.

           

Observe-se que, no caso da Resolução TCE nº 119/2020, os dispositivos constantes do artigo 6º, incisos e §§ 1º a 4º podem ser interpretados como meras orientações, não sendo necessário, portanto, afastá-los.

           

No entanto, os §§ 5º e 6º revelam-se, claramente, normas limitadoras do direito de ação dos Municípios, ao pretender fixar piso mínimo para ajuizamento e admissibilidade processual de execuções fiscais, representando disposições de Direito Processual que extrapolam as normas legais, especificamente dispostas no Código de Processo Civil, no Código Tributário Nacional e na Lei de Execução Fiscal.

 

2.6.      A matéria não é nova nesta Corte de Justiça, sendo inúmeros os julgados que declaram ser indevida tal ingerência, com base em entendimento assente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), inclusive sumulado.

           

De acordo com entendimento pacífico na col. Corte de Uniformização de Jurisprudência em Matéria Infraconstitucional (STJ), cabe apenas à Fazenda Pública avaliar se deve ou não dispensar a inscrição em dívida e o ajuizamento de execução de seus créditos de pequeno valor, sendo defeso até mesmo ao juízo substituir o credor na valoração de interesse de agir e extinguir a execução sob esse fundamento.

           

Outro não é, a propósito, o teor da Súmula 452 do STJ, a qual enuncia: "A extinção das ações de pequeno valor é faculdade da Administração Federal, vedada a atuação judicial de ofício".

           

Por oportuno, merecem destaque os elucidativos precedentes da referida Corte Superior (STJ):

 

PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO FISCAL. VALOR IRRISÓRIO. EXTINÇÃO DEOFÍCIO. IMPOSSIBILIDADE. EXISTÊNCIA DE INTERESSE DE AGIR.

1. Não procede a alegada ofensa aos artigos 458 e 535 do CPC. É que o Poder Judiciário não está obrigado a emitir expresso juízo de valor a respeito de todas as teses e artigos de lei invocados pelas partes, bastando para fundamentar o decidido fazer uso de argumentação adequada, ainda que não espelhe qualquer das teses invocadas.

2. "Não incumbe ao Judiciário, mesmo por analogia a leis de outros entes tributantes, decretar, de ofício, a extinção da ação de execução fiscal, ao fundamento de que o valor da cobrança é pequeno ou irrisório, não compensando sequer as despesas da execução, porquanto o crédito tributário regularmente lançado é indisponível (art. 141, do CTN), somente podendo ser remitido à vista de lei expressa do próprio ente tributante (art. 150, § 6º, da CF e art. 172, do CTN)" (REsp 999.639/PR, Rel. Min. Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 6.5.2008, DJe 18.6.2008).

 3. Recurso especial provido, em parte, para determinar o prosseguimento da execução fiscal.

(STJ, REsp 1.319.824/SP, rel. Min. Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe 23/05/2012).

TRIBUTÁRIO. EXECUÇÃO FISCAL. IPTU. IMPOSTO MUNICIPAL. VALOR IRRISÓRIO. AUSÊNCIA DE LEGISLAÇÃO ESPECÍFICA. INTERESSE DE AGIR. EXTINÇÃO DO PROCESSO SEM JULGAMENTO DE MÉRITO. IMPOSSIBILIDADE.

1. A extinção da execução fiscal, sem resolução de mérito, fundada no valor irrisório do crédito tributário, é admissível quando prevista em legislação específica da entidade tributante.

2. O crédito tributário regularmente lançado é indisponível (art. 141, do CTN), somente podendo ser remitido à vista de lei expressa do próprio ente tributante (art. 150, § 6º, da CF/1988 e art. 172, do CTN), o que não ocorre na presente hipótese.

3. Incumbe aos Municípios a disposição que permite legislarem sobre interesse local, nos termos do art. 30, da Carta Magna.

4. A intervenção do judiciário na presente hipótese importa na afronta ao princípio constitucional da separação dos poderes, restringindo, outrossim, o direito de ação do Município, uma vez que, estando presentes os pressupostos processuais e as condições da ação, não há qualquer impedimento legal ao ajuizamento da demanda no valor lançado pela Administração.

5. Recurso especial desprovido.

(STJ, REsp 999.639/PR, rel. Min. Luiz Fux, Primeira Turma, DJe 18/06/2008).

           

Portanto, pode-se dizer que, mesmo que vigente a Resolução TCE nº 119/2020 ou outro ato normativo infralegal, não é facultado ao juízo extinguir a execução fiscal, ainda que o valor do crédito exequendo seja inferior àquele indicado pelo Tribunal de Contas do Estado, se o Município, ainda assim, resolveu ajuizar a execução fiscal.

 

2.7.      Em reforço a essa linha de raciocínio, cumpre fazer paralelo com situação idêntica relacionada à extinção de ofício de execuções fiscais estaduais de créditos de pequeno valor, amplamente analisada por esta Corte de Justiça.

           

Destaque-se que, no âmbito da Fazenda Estadual, a legislação de regência (Lei Complementar nº 401/2018 e Decreto Estadual nº 47.086/19) apenas autoriza a Fazenda Pública a desistir ou requerer a extinção de ação de execução fiscal, ou seja, trata-se de mera faculdade. Ademais, nos termos dos mesmos diplomas normativos, observe-se que apenas e tão somente a Fazenda Pública pode exercer tal faculdade, não sendo dado ao magistrado atuar de ofício, tampouco a um órgão externo – o TCE/PE – estabelecer tais limites.

           

Ora bem, ao aplicar o piso mínimo para ajuizamento e admissibilidade de execuções fiscais municipais, o juízo incorre no mesmo equívoco, uma vez que compete apenas à Fazenda Pública Municipal decidir acerca do ajuizamento, desistência ou extinção de ação de execução fiscal. E a situação das execuções fiscais municipais é mais grave ainda, uma vez que estamos diante de decisões que se fundamentam em atos infralegais, enquanto, no âmbito estadual, existe lei em sentido formal.

           

Portanto, da mesma forma como compete apenas à Fazenda Estadual avaliar se deve ou não dispensar a inscrição em dívida e o ajuizamento de execução de seus créditos de pequeno valor, também apenas cabe à Fazenda Municipal decidir se irá ajuizar ou não a execução fiscal, sendo defeso ao juiz substituir o credor na valoração de interesse de agir e extinguir a execução, ainda que utilize como fundamento ato infralegal oriundo da Corte de Contas Estadual.

 

2.8.      Neste contexto, a jurisprudência assente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), largamente aplicada nesta Corte de Justiça, de que apenas as Fazendas Públicas detêm competência para dispor acerca de piso mínimo para propositura ou extinção de execuções fiscais, em consonância com os termos da supracitada Súmula 452 do STJ, a qual enuncia: "A extinção das ações de pequeno valor é faculdade da Administração Federal, vedada a atuação judicial de ofício".

 

2.9.      Ademais, destaque-se que não diverge desse entendimento a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), que, ao julgar o Tema de Repercussão Geral nº 109, fixou a tese de que “Lei estadual autorizadora da não inscrição em dívida ativa e do não ajuizamento de débitos de pequeno valor é insuscetível de aplicação a Município e, consequentemente, não serve de fundamento para a extinção das execuções fiscais que promova, sob pena de violação à sua competência tributária”:

 

“TRIBUTÁRIO. PROCESSO CIVIL. EXECUÇÃO FISCAL. MUNICÍPIO. VALOR DIMINUTO. INTERESSE DE AGIR. SENTENÇA DE EXTINÇÃO ANULADA. APLICAÇÃO DA ORIENTAÇÃO AOS DEMAIS RECURSOS FUNDADOS EM IDÊNTICA CONTROVÉRSIA. 1. O Município é ente federado detentor de autonomia tributária, com competência legislativa plena tanto para a instituição do tributo, observado o art. 150, I, da Constituição, como para eventuais desonerações, nos termos do art. 150, § 6º, da Constituição. 2. As normas comuns a todas as esferas restringem-se aos princípios constitucionais tributários, às limitações ao poder de tributar e às normas gerais de direito tributário estabelecidas por lei complementar. 3. A Lei nº 4.468/84 do Estado de São Paulo - que autoriza a não-inscrição em dívida ativa e o não ajuizamento de débitos de pequeno valor - não pode ser aplicada a Município, não servindo de fundamento para a extinção das execuções fiscais que promova, sob pena de violação à sua competência tributária. 4. Não é dado aos entes políticos valerem-se de sanções políticas contra os contribuintes inadimplentes, cabendo-lhes, isto sim, proceder ao lançamento, inscrição e cobrança judicial de seus créditos, de modo que o interesse processual para o ajuizamento de execução está presente. 5. Negar ao Município a possibilidade de executar seus créditos de pequeno valor sob o fundamento da falta de interesse econômico viola o direito de acesso à justiça. 6. Sentença de extinção anulada. 7. Orientação a ser aplicada aos recursos idênticos, conforme o disposto no art. 543-B, § 3º, do CPC.”

           

Evidente que, se não pode fazê-lo uma lei, ainda que de outra esfera, muito menos poderia um mero ato regulamentar (infralegal) de uma Corte de Contas fundamentar a admissibilidade das execuções fiscais municipais.

 

2.10.    Não se desconhece, destaque-se, o recente reconhecimento da repercussão geral de Tema 1184 (RE 1355208), em 26/11/2021, em que se discute a extinção de execução fiscal municipal de baixo valor, por falta de interesse de agir, tendo em vista a modificação legislativa sobre o tema (possibilidade de protesto de certidões de dívida ativa – Lei nº 12.767/2012) e a desproporção dos custos de prosseguimento da ação judicial, o que implica o debate, por conseguinte, do afastamento da tese fixada no Tema nº 109:

 

RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPRESENTATIVO DA CONTROVÉRSIA. TRIBUTÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO FISCAL. MUNICÍPIO. EXTINÇÃO POR FALTA DE INTERESSE DE AGIR. BAIXO VALOR. ONEROSIDADE DA AÇÃO JUDICIAL E POSSIBILIDADE DE PROTESTO DAS CERTIDÕES DE DÍVIDA ATIVA. LEI 12.767/2012. CONTROVÉRSIA SOBRE A APLICABILIDADE DO TEMA 109. RE 591.033. MULTIPLICIDADE DE RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS. PAPEL UNIFORMIZADOR DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RELEVÂNCIA DA QUESTÃO CONSTITUCIONAL. MANIFESTAÇÃO PELA EXISTÊNCIA DE REPERCUSSÃO GERAL.

(RE 1355208 RG, Relator(a): MINISTRO PRESIDENTE, Tribunal Pleno, julgado em 25/11/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-238 DIVULG 01-12-2021 PUBLIC 02-12-2021)

           

Porém, até o momento, não houve posição de mérito quanto à questão, de modo que mantida a estrita obediência à tese fixada no Tema 109 de repercussão geral.     

 

2.11.    Diante do exposto, forçoso reconhecer que a Resolução TCE nº 119/2020 deve obediência à Constituição Federal e aos demais diplomas legais que fixam normas para a constituição e cobrança de créditos públicos por meio de execuções fiscais, não podendo com estas entrar em conflito.

           

Atuar em desacordo com este entendimento importaria em permitir ao TCE avocar o próprio poder de tributar do Município, “ente federado detentor de autonomia tributária, com competência legislativa plena tanto para a instituição do tributo, observado o art. 150, I, da Constituição, como para eventuais desonerações, nos termos do art. 150, § 6º, da Constituição”, o que não é admitido de acordo com a jurisprudência da Suprema Corte (STF).

 

2.12.    Nesta senda, conclui-se que, ao editar a Resolução em comento, prevendo em seu texto normas de Direito Processual relativas ao ajuizamento e à admissibilidade de execuções fiscais - matéria esta afeta à competência privativa da União -, o TCE/PE comete vício de inconstitucionalidade: (a) ante a inobservância do artigo 22, I, da CF/88, (b) bem como por extrapolar de sua competência constitucional (artigos 71 e 75, CF/88) e (c) usurpar o poder de tributar do Município (artigo 150, I e §6º da CF/88), nos termos da tese fixada no Tema nº 109 de Repercussão Geral.    

 

III. Da desnecessidade de observância da cláusula de reserva de plenário

 

3.1.      Dos fundamentos expendidos, percebe-se, portanto, que a Resolução TCE nº 119/2020 padece de diversos vícios de inconstitucionalidade, sendo suficiente, sem dúvidas, arguir apenas um deles para justificar a sua invalidade.

 

3.2.      Por sua vez, a arguição de inconstitucionalidade deve obediência à cláusula de reserva de plenário, o que apenas é ressalvado diante da existência de pronunciamento do plenário ou órgão especial dos Tribunais ou do STF sobre a questão.

 

3.3.      E, em razão dos pronunciamentos aqui colacionados, especificamente em razão da tese fixada no Tema nº 109 de Repercussão Geral, entendo que se está diante do permissivo do art. 949, parágrafo único, do CPC/15, de modo que deixo de arguir incidente de inconstitucionalidade:

 

Art. 949. Se a arguição for:

I - rejeitada, prosseguirá o julgamento;

II - acolhida, a questão será submetida ao plenário do tribunal ou ao seu órgão especial, onde houver.

Parágrafo único. Os órgãos fracionários dos tribunais não submeterão ao plenário ou ao órgão especial a arguição de inconstitucionalidade quando já houver pronunciamento destes ou do plenário do Supremo Tribunal Federal sobre a questão.

 

3.4.      Com efeito, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do ARE 914045, com força de repercussão geral, estabeleceu que prescinde da submissão de matéria à regra estabelecida pelo art. 97 da Constituição Federal quando a decisão estiver lastreada por jurisprudência firmada pelo pleno do STF, senão vejamos:

 

RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. REPERCUSSÃO GERAL.REAFIRMAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA. DIREITO TRIBUTÁRIO E DIREITO PROCESSUAL CIVIL. CLÁUSULA DA RESERVA DE PLENÁRIO. ART. 97 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL PLENO DO STF. RESTRIÇÕES IMPOSTAS PELO ESTADO. LIVRE EXERCÍCIO DA ATIVIDADE ECONÔMICA OU PROFISSIONAL. MEIO DE COBRANÇA INDIRETA DE TRIBUTOS. 1. A jurisprudência pacífica desta Corte, agora reafirmada em sede de repercussão geral, entende que é desnecessária a submissão de demanda judicial à regra da reserva de plenário na hipótese em que a decisão judicial estiver fundada em jurisprudência do Plenário do Supremo Tribunal Federal ou em Súmula deste Tribunal, nos termos dos arts. 97 da Constituição Federal, e 481, parágrafo único, do CPC. 2. O Supremo Tribunal Federal tem reiteradamente entendido que é inconstitucional restrição imposta pelo Estado ao livre exercício de atividade econômica ou profissional, quanto aquelas forem utilizadas como meio de cobrança indireta de tributos. 3. Agravo nos próprios autos conhecido para negar seguimento ao recurso extraordinário, reconhecida a inconstitucionalidade, incidental e com os efeitos da repercussão geral, do inciso III do §1º do artigo 219 da Lei 6.763/75 do Estado de Minas Gerais. (ARE 914045 RG, Relator(a): Min. EDSON FACHIN, julgado em 15/10/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-232 DIVULG 18-11-2015 PUBLIC 19-11-2015)

 

3.5.      O controle de constitucionalidade aqui realizado, portanto, não viola a cláusula de reserva de plenário, insculpida no art. 97 do Texto Constitucional, tendo em vista amoldar-se à tese fixada no Tema nº 109 de Repercussão Geral.

 

IV. Conclusão

 

4.1.      Nesse contexto, conclui-se que atos normativos do TCE ou de outros órgãos externos e autônomos em relação à municipalidade que disponham acerca de piso mínimo para admissibilidade, ajuizamento, desistência ou extinção de Execuções Fiscais Municipais apenas podem ser compreendidos como mera recomendação, sem repercussão na esfera do direito de ação dos Municípios, sob pena de violação à sua competência tributária.

 

4.2.      Portanto, sugere-se a edição do seguinte enunciado: “Não pode o magistrado, de ofício, arquivar, inadmitir ou extinguir a execução fiscal sob o fundamento de que não foram atendidos os procedimentos prévios constantes de atos normativos infralegais interpretados como condição de procedibilidade da ação ou de que não foi observado o valor mínimo para a propositura da demanda executiva”.

  

[1] Art. 948. Arguida, em controle difuso, a inconstitucionalidade de lei ou de ato normativo do poder público, o relator, após ouvir o Ministério Público e as partes, submeterá a questão à turma ou à câmara à qual competir o conhecimento do processo.

[2] FERNANDES, Jorge Ulisses Jacoby. Tribunais de Contas do Brasil: jurisdição e competência. 3. ed. rev. atual. e ampl. Belo Horizonte: Fórum, 2012. Pág. 268.

[3] ALVES, Francisco Sérgio Maia. O ativismo na atuação jurídico-administrativa do Tribunal de Contas da União. Estudo de casos. RIL Brasília a. 53 n. 209 jan./mar. 2016. Pág. 309. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/520010/001063276.pdf?sequence=1&isAllowed=y. “O Tribunal de Contas não tem competência constitucional para exercer o poder regulamentar, que é privativo do Executivo. A lei que se refere ao exercício de tal competência deve ser interpretada conforme a Constituição, com o sentido de que o órgão de contas desfruta de competências normativas inferiores, e não do poder de editar regras gerais e abstratas. Não tem o Tribunal competência para editar regulamentos de execução, regulamentos autônomos, nem muito menos para invadir a esfera de reserva legal, com o fim de impor obrigações, estabelecer requisitos ou ditar vedações que não tenham apoio na lei.” (Luís Roberto Barroso. Temas de Direito Constitucional. 2001, Ed. Renovar, p. 239).

[4] ALVES, Francisco Sérgio Maia. Op. cit. Pág. 320.

[5] Roberto Ribeiro Bazilli, Contratos Administrativos, 1996, Ed. Malheiros, p. 155.

[6] Barroso, Luís Roberto. Tribunais de Contas: algumas incompetências. Revista De Direito Administrativo203, 131–140. Disponível em: https://doi.org/10.12660/rda.v203.1996.46695.