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Com dedicação e paciência, a professora Letícia Barros usa um alfinete para furar a espessa cartolina branca que tem nas mãos. Apesar da destreza de movimentos, vez por outra machuca a ponta dos dedos ao tracejar vogais e consoantes em letras de fôrma.
Sua missão é de pura generosidade. Alfabetizar seu aluno e sobrinho Arnaldo, que tem 8 anos de idade e nasceu cego. Estamos em 1940, no Recife, e o sistema de escrita criado pelo francês Louis Braille ainda não foi totalmente difundido no Brasil.
Voltemos a 2022. Fazendo o saudável exercício de revisitar o passado para exaltar a beleza da caminhada, Arnaldo José de Barros e Silva completa 90 anos nesta quarta-feira (10/8).
De tão admirável e repleta de maravilhas, sua história de vida é daquelas que nos fazem perceber que não há limites para quem sonha alto.
Arnaldo é superação.
Mas, calma. O principal ingrediente da jornada deste nonagenário, que receberá no próximo dia 15 a Medalha da Ordem do Mérito Judiciário Desembargador Joaquim Nunes Machado do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE), vai além da superação.
Aqui entra o amor. Porque sem amor nada seríamos. Está em Coríntios.
Para além de abordagens religiosas, literárias, filosóficas ou científicas, o amor na concepção de Arnaldo tem nome: Sônia Torres de Barros e Silva.
Ela foi - e continua sendo - a grande companheira, a esposa, a amiga incondicional que sempre está por perto para ajudar o marido sob todos os aspectos e, claro, também nas atividades rotineiras que exigem o sentido da visão. Em certa medida, por causa da deficiência visual de Arnaldo, Sônia está para o marido como a professora Letícia esteve para o aluno naquele longínquo 1940.
Arnaldo é um homem de sorte. Desde cedo, sempre teve pessoas boas a seu lado, a começar dos próprios pais e irmãos. Nunca se vitimou. Sempre estudou mais, trabalhou mais, batalhou mais. Foi telefonista, radioamador, apresentador de programa de rádio, comerciante. Também foi o primeiro aluno cego a se formar na Faculdade de Direito do Recife, abriu um escritório de advocacia no Centro do Recife, foi servidor da Secretaria da Educação, formou família, educou os filhos, perdeu a casa na cheia de 1975, recuperou tudo de novo pouco tempo depois.
São muitas as etapas de toda uma vida. Como ele conseguiu tudo isso?
Sônia é a resposta.
Ela é a fortaleza e o porto seguro de Arnaldo. Em alguns momentos da sua trajetória, Sônia renunciou ao protagonismo da própria vida para preservar o relacionamento. Em nome da felicidade, optou por abdicar de alguns planos que traçara para si mesma.
Deixou de trabalhar fora e aceitou postergar a conclusão dos estudos. Num dado momento de sua jornada, diante da resistência de seu pai em aceitar seu relacionamento com um homem cego (eram outros tempos), concordou em fugir para casar, mesmo tendo claro em sua mente que tal atitude a afastaria não apenas do pai, mas de toda sua família.
Ainda que entristecida pela rejeição do pai a Arnaldo, jamais titubeou. No dia da fuga, segurando as malas com uma mão e amparando Arnaldo com a outra, tomou um trem para o Catende e dali para Belém de Maria. Havia um plano de ambos que num engenho de cana distante seria possível convencer um padre a casá-los. Já eram maiores de idade, afinal.
No caminho, durante as pausas nas conversas com o futuro marido, Sônia olhava a paisagem na janela e lamentava em pensamento que, diferentemente das moças de sua idade, não poderia caminhar com vestido e véu de noiva, de mãos dadas com o pai, até o altar da igreja.
Filha e pai ficaram afastados pelo preconceito durante 17 anos. Em 1974, numa caminhada rotineira pelo Centro, Sônia se encontrou com o pai casualmente. Paralisada, deixou cair as sacolas que carregava e conseguiu apenas dizer "Papai". Surpreendentemente, ele se dirigiu a ela e a abraçou.
Depois, durante a Primeira Comunhão de um dos netos, não apenas apareceu para falar com todos os presentes, como convidou filha e genro para um grande almoço de reconciliação. Dias depois, estavam todos juntos no almoço.
Encerrada a festa, depois de muitos abraços de felicidade e pedidos de perdão, já sozinho com a esposa e mãe de Sônia, Áurea, o pai de Sônia fez uma confidência sobre o genro: "Quanto tempo eu perdi sem conhecer esse homem"
Arnaldo e Sônia estão juntos desde a noite de 7 de outubro de 1956, um domingo jamais será esquecido. Ele trabalhava no Hospital Jaime da Fonte. São 66 anos de uma vida a dois que, sim, virou um livro. A autobiografia não poderia ter um nome mais apropriado: "Do que o amor é capaz!".
Em 247 páginas com muito detalhes sobre filhos, netos, amigos, familiares próximos e distantes, costumes de época, o livro traz os percalços, as frustrações, as vitórias e as alegrias de dois jovens que, como nos romances tão apreciados por Sônia na juventude, nasceram um para o outro.
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Texto: Saulo Moreira | Ascom TJPE
Foto: Antônio Santos | Ascom TJPE