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A luta e a quebra de estereótipos da pessoa com deficiência

 

 A servidora Dayse Macleanne numa mesa no setor de conciliação no TJPE

Dayse Macleanne, 37 anos, é servidora do TJPE desde 2009 e atualmente trabalha como conciliadora

Nesta segunda-feira, 21 de setembro, é celebrado o Dia Nacional de Luta da Pessoa com Deficiência. O Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE) caminha para a inclusão, a garantia dos direitos e a valorização da pessoa com deficiência, lutando por uma sociedade mais justa e igualitária. Atualmente o Judiciário estadual possui um quadro total de 183 pessoas com deficiência nas funções de servidores e estagiários, segundo a Diretoria de Desenvolvimento Humano (DDH). E para assegurar a plena atuação dessas pessoas em um ambiente acolhedor e adequado o TJPE conta com uma Comissão de Acessibilidade e Inclusão (CACIN).

A Comissão foi criada, de acordo com as recomendações do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), para trabalhar na remoção de obstáculos e barreiras (físicas, arquitetônicas, de comunicação e atitudinais), assim como providenciar os recursos necessários para inclusão e adaptação, e também determinar metas para ações e projetos sensíveis à acessibilidade tanto do público interno como do externo, entre outras atribuições presentes no Edital nº 128/2020. Para Eliane Luna, diretora adjunta da DDH e representante titular dessa na CACIN, a Comissão tem a tarefa de facilitar o ambiente de trabalho da melhor maneira possível e atendê-los de acordo com a necessidade individual de cada um deles.

Para afastar preconceitos concebidos pela desinformação e ideias capacitistas, tivemos uma conversa com alguns dos atuantes do Tribunal, que livres de quaisquer amarras contam suas histórias e provam que são como todos nós. Eles enfrentam obstáculos, se adaptam as mais diversas situações e contam com muita determinação quando o assunto é demonstrar seus valores. Confira:

Dayse Macleanne, 37 anos, é servidora do TJPE desde 2009. Atualmente ela é conciliadora, lotada no Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania do Recife (Cejusc). Ela é deficiente auditiva, condição que adquriu depois de ter caxumba e otite na infância. Os primeiros sinais de que estava com dificuldades para ouvir começaram com seus 11 anos e o reflexo se dava nas reuniões de pais e mestres da escola onde sempre falavam sobre sua inteligência, mas queixavam-se por ela ser muito “desligada”. Depois da visita de um tio otorrino, passando férias no Recife, ele notou que ela possuía uma deficiência. “Então fiz exames e foi constatada a deficiência por volta dos 12 anos”, declara. Ela relembra que ficou muito assustada e que chegou a ter depressão. “Eu tinha vergonha ao usar aparelho auditivo, pois era uma adolescente e não sabia lidar com isso”, conta.

Fez duas graduações, sendo uma em Turismo e outra em Direito. O processo foi muito difícil por não conseguir ouvir bem seus professores, porém não deixava que isso fosse um empecilho para seu aprendizado e estudava em casa para compensar o que não podia entender nas aulas. Com esse mesmo esforço também fez curso de espanhol e está no nível intermediário do idioma. Quando entrou para o Tribunal, atuando como técnica judiciária em Juizados, também tinha algumas limitações por não escutar bem as pessoas ao seu redor e nem poder atender ao telefone. Descobriu nessa época ter uma grande vontade em ser conciliadora. “Sempre tive o desejo de ser conciliadora, mas achava que não se encaixava no perfil por conta da deficiência”, revela.

A perda de sua audição foi progressiva.“Nos meus 30 anos eu estava com surdez profunda no ouvido direito e moderada para severa no esquerdo”. Um ano depois, faltando pouco tempo para graduar-se em Direito fez o implante coclear em um dos ouvidos e tudo ficou diferente. “Eu dependia que as pessoas atendessem meu telefone ou ligassem para marcar compromissos, para ir à consultas precisava que alguém ficasse ouvindo o médico chamar, tinha baixa autoestima e ainda tinha depressão por estar perdendo a audição. Agora tudo mudou”. Após passar o período de adaptação o sonho de ser conciliadora retornou. “Por que não? Eu posso mudar minha vida” e assim se inscreveu para a seleção e foi aprovada. Atua na área desde 2016. Ela consegue entender as audiências, conversa ao telefone, assiste televisão, sai sozinha, está mais participativa em eventos e pode se dedicar em fazer mais cursos. “Tenho uma vida nova”, comemora.

Hoje tem duas pós-graduações cíveis e uma formação em Psicanálise Clínica. “O limite está dentro da gente, podemos superar tudo”. Agora ela vê sua vida definida em liberdade, leveza, independência e felicidade. Para ela, o dia 21 é um lembrete: “Essa data lembra a luta constante que nós deficientes passamos, uma luta diária. Reconhece também muitas conquistas e direitos alcançados”. Existe muita gente com preconceito e por isso ela também acha de extrema importância que as pessoas não confundam deficiência com ineficiência. “Eu mostro através do meu trabalho que sou capaz, não tem porque ninguém me menosprezar pela minha deficiência. Uma coisa não tem nada a ver com a outra”, destacando que deficiência não é incapacidade.

Júlio César, 26 anos, consultando o computador, exercendo seu trabalho no TJPE
 Lotado na Vara Única de Orobó como assessor de magistrado, Júlio César, 26 anos, é servidor há sete anos

Júlio César, 26 anos, é servidor há sete anos, assessor de magistrado lotado na Vara Única de Orobó. Ele é deficiente visual. Possui uma doença degenerativa, a retinose pigmentar, descoberta ainda na infância. A doença se caracteriza por ser hereditária, mas não conhece ninguém na família que a possui, concluindo que deve ter na genética por causa de um familiar muito distante. A família já tinha percebido que demorava muito para encontrar objetos no chão e tinha dificuldades com algumas brincadeiras, como jogar bolinha de gude. Entretanto foi só depois de um episódio em sala de aula que resolveram procurar um médico. “O ponto para procurarmos um oftalmologista, para investigar de fato, se deu quando nós fizemos um círculo na sala de aula e eu, que sempre ficava na primeira carteira da fila, fiquei na posição contrária ao quadro, sem conseguir ver o que estava escrito, enquanto meus colegas o faziam normalmente”, comenta. Depois da visita ao oftalmologista, com seus 10 anos, foi dado o diagnóstico de retinose pigmentar.

De acordo com as indicações médicas, a visão foi piorando ao longo dos anos, ao ponto de hoje apenas ter pequenos resquícios da visão. Ele fala que tentou se antecipar às necessidades quando notou a perda mais significativa. “Como eu sabia que ia perder a visão mesmo, comecei a usar bengala antes de precisar de fato. Comecei a usar o computador com a tela desligada, sem usar recursos de acessibilidade para ampliar o texto, isto é, usando somente os recursos de áudio (leitor de telas)”, relembra. Ele ainda conta que a reação no começo foi bastante difícil, principalmente pela idade na qual recebeu o diagnóstico. Contudo, o apoio da família, sua permanência na escola regular e a convivência no contraturno com outras pessoas com deficiência visual no Instituto dos Cegos de Campina Grande, foram de extrema importância para seu desenvolvimento pessoal e profissional.

Ele revela que suas principais dificuldades nos estudos consistiam em estudar por gráficos, esquemas, mapas mentais e coisas do tipo, porque “muita coisa é mais fácil de se guardar pela memória visual”. Sua trajetória no colegial teve várias fases como: “Fazer tudo sozinho, depois ir escrevendo em um caderno normal com os professores falando o que estava copiando no quadro, depois usando um caderno especial com linhas mais grossas e espaçadas e uma caneta com escrita grossa. Depois, compramos um aparelho com uma lâmpada para a mesa que eu usava na escola e lupas eletrônicas. Quando comecei minha primeira graduação, em 2010, ganhei um notebook de minha mãe, passando a usar o recurso de leitor de telas”. Sua primeira graduação foi em jornalismo e nessa mesma época foi nomeado no concurso do TJPE como técnico judiciário.

“Eu comecei a trabalhar no TJPE com 19 anos, nunca tinha entrado em um fórum na vida, sendo a primeira vez já para trabalhar. Usei no TJPE tudo que já tinha aprendido no tocante ao uso de recursos de acessibilidade, empregando agora também no trabalho”, comenta. Para facilitar suas atividades foi disponibilizado, através de sua solicitação, um leitor de telas, um scanner e um software chamado ABBY FINE READER, que ele garante ajudar muito. Como antes os processos eram todos físicos ele precisava com frequência escanear e colocar o computador para ler, demandando mais tempo para realizar seu trabalho. Todavia hoje há o Processo Judicial eletrônico (PJe) e o tempo normalizou-se, tendo em vista que o processo já está todo no formato que o computador lê. “O TJ forneceu os equipamentos solicitados e vem implementando em boa velocidade o PJe para a tramitação de todos os processos, inclusive os criminais que começarão a ser digitalizados em breve. Este processo de digitalização, por si só, já faz grande diferença. Cegos são inimigos de papel”, brinca.

E quando se fala em preconceitos ele admite existir muitas pessoas que fazem julgamentos antecipados por desconhecimento, desinformação. “Eu sei que quem não me conhece pode ficar com um pé atrás. É normal reagir assim no começo, mas isto muda após o primeiro contato”, alega. E apesar disso sente orgulho por ser quem é. “Em 2016 comecei a exercer a função de conciliador e desde 2019 sou assessor do magistrado, uma função gratificada para a qual fui escolhido em detrimento de outras pessoas, sem deficiência. Isto se reflete em minha capacidade profissional, e acho que devo me orgulhar disto”, aponta. Ele diz que tem conquistado seu espaço com muito esforço e com isso tenta ajudar outras pessoas com deficiência, motivando-as a buscar seus sonhos e olhando para seu exemplo. “O dia 21 de setembro serve para honrarmos todas as pessoas com deficiência, que precisam se esforçar mais do que as que não a tem, para conseguir realizar seus sonhos, e eu me orgulho de fazer parte deste grupo”.

Maria Helena Nunes, lotada no Centro de Apoio Psicossocial, em atividade no setor

Estudante do 8º período de Psicologia, Maria Helena é estagiária do Tribunal há um ano, lotada no CAP

Maria Helena Nunes, 24 anos, estudante do 8º período de Psicologia, é estagiária do Tribunal há um ano, lotada no Centro de Apoio Psicossocial (CAP/TJPE). Ela possui deficiência motora nos membros inferiores. Sua deficiência é caracterizada como congênita, ou seja, aconteceu durante a gestação. Helena a descreve não como uma deformidade, porque todos os ossos estão em perfeita condição, mas como um encurtamento em alguns ossos. Um caso raro que felizmente a permite andar com o auxílio de órteses, mesmo com dificuldades.  Através de exames, quando era mais nova, o mapeamento genético provou que não havia nada relacionado à sua genética, ela não possui nenhum histórico familiar com qualquer parente com deficiência.

Há alguns anos problemas têm aparecido, causados pela rotina que leva como estudante. “Por carregar muito peso isso está acarretando um encurtamento da coluna”, conta. Além de dores na coluna, também as desenvolveu no pulso por tentar diminuir o peso que a coluna carrega. Não pode andar muito, mas com o estágio o percurso aumentou. Ela utiliza uma órtese pra andar, a qual chama de "botinha" como um apelido carinhoso, e uma prótese, mas não com tanta frequência porque dói. Não possui cadeira de rodas por não ser uma boa opção quando seu caminho sãos as ruas de Recife, que não são conhecidas pelo bom calçamento e acessibilidade. Somado a esses impasses físicos precisou lidar com preconceitos, tanto no meio familiar quanto no meio externo. Para lidar com tudo isso internamente ela sempre contou com o apoio da sua mãe, sua avó, irmãos, primos e amigos.

Apesar dela mesma não ter problemas com sua deficiência e até priorizar outros aspectos, assume papéis para evitar certos comentários. “Outras características minhas me representam mais do que minha deficiência, eu sempre encarei de forma natural, é o que eu sou e pronto”, declara. Ela diz que após ampliar seu círculo de contatos, ao entrar na universidade, conseguiu conhecer mais pessoas com deficiência e constata que todos compartilham o mesmo tipo de pensamento. “Todos têm a mesma visão que eu, eles se definem por outras coisas enquanto as outras pessoas os definem mais como deficientes”. Deficiente é como as outras pessoas a definem, o que os outros sempre impõem como sua característica principal. “Apesar de ser parte do que eu sou não é só o que eu sou”, completa

Na vida dela a deficiência é algo secundário. Quando criança foi agredida por um colega de classe e achou que era por problemas de raiva ou por ele não gostar dela, mas se tratava de preconceito.  “Eu nunca pensei nisso como motivo principal até entender o que era”, relembra, e hoje ainda carrega uma cicatriz do incidente. Também sempre teve que provar suas capacidades. Quando se inscreveu para a seleção de estágio do Tribunal não foi diferente. “Fico pensando que sempre tenho que expor que consegui tal conquista por mérito próprio, não por alguma 'vantagem' que me foi dada. Existiram pessoas que acreditaram que eu só tinha entrado pra cumprir cota, e isso me atinge, mas quando recebi minha avaliação semestral do estágio vi que posso ter entrado pelas cotas, mas estou e continuo lá por mérito meu, de mais ninguém. Deixa eles pensarem que estou por cotas, não ligo. Só a satisfação pessoal é o suficiente pra mim", conta satisfeita.

Ela explica que as pessoas assumem rótulos como pobre ou uma coitada, e isso acabou moldando vários aspectos de sua vida. “Minha avó insiste que eu use apenas ouro, demorei para entender mas agora sei que é pelo pensamento que as pessoas têm de mim”. As pessoas olham de forma diferente, então ela mantém padrões como sempre sair arrumada, o cabelo nunca ficar desalinhado, entre outras questões tanto na aparência como nos jeitos pelo o que as pessoas podem interpretar. “Por eu sempre ter que me arrumar muito já tive várias situações de as pessoas acharem que eu sou a psicóloga do TJ e não a estagiária, pelos padrões muito altos que eu coloco para mim. Se eu pudesse, seria capaz de me vestir como uma juíza federal o tempo todo”, brinca. Porém isso tem um reflexo de experiências anteriores, quando se permitiu relaxar um pouco na aparência para se equiparar aos seus amigos recebeu atitudes negativas e preconceituosas.

 “Eu tenho atitudes que se fosse de outra forma talvez eu não tivesse, por achar que preciso compensar de alguma forma por ser deficiente. Sou extremamente simpática, brincalhona, expressiva e extravagante para quebrar a barreira de deficiente coitada, porque as pessoas se afastam por possuírem essa visão”. São grandes características de sua personalidade, mas ela imagina que se não fosse deficiente seria completamente diferente. Porém não sabe dizer como seria porque não consegue imaginar como é não ter uma imagem totalmente formada pela sociedade sobre ela. São coisas que ela não se arrepende de ser, mas queria mais que fosse reconhecida por ser uma pessoa de grande coração, sensibilidade e que se doa 100% em tudo que faz. Felizmente, consegue espaço para deixar a imagem que ela quer, de quem realmente é, depois de quebrar as barreiras sociais dos primeiros contatos.

A Lei nº 11.133, que oficializa o dia 21 de setembro, só foi sancionada em 14 de julho de 2005, mas a comemoração já vinha sendo feita antes do decreto desde 1982. O dia carrega uma ligação simbólica e metafórica por coincidir com o início da primavera no hemisfério sul, possuindo o significado de Renascimento e Renovação da vida, assim como acontece no desabrochar das flores. A história dessas três pessoas nos lembra que apesar da luta diária eles não estão exigindo compaixão, mas reconhecimento, inclusão, valorização e respeito acima de qualquer coisa.

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Texto: Aryagne Lopes | Ascom TJPE
Fotos: Cortesia