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Mulheres Negras Latino-Americanas e Caribenhas: TJPE homenageia aquelas que lutam pelo fim do racismo e da desigualdade

 

Inaldete Pinheiro foi uma das fundadoras do Movimento Negro do Recife (MNR), em 1979

O dia 25 de julho representa um marco internacional de luta e resistência das mulheres negras da América Latina e do Caribe. A data foi instituída em referência ao 1º Encontro de Mulheres Negras Latino-Americanas e Caribenhas, realizado na República Dominicana, em 1992. A partir de então, tornou-se um símbolo de reflexão e tomada de ações para a valorização e luta dessas mulheres contra o racismo e o machismo.  O Dia foi instituído pela Lei nº 12.987/2014.

No Brasil, a data também é uma homenagem à Tereza de Benguela, mulher negra que viveu no século XVIII, no Vale do Guaporé (MT), e liderou o Quilombo de Quariterê após a morte do marido. Segundo documentos da época, ela esteve à frente na resistência de cerca de 100 negros e indígenas pelo período de duas décadas. Sob seu comando, o governo do quilombo consistia em uma espécie de Parlamento, tendo o sistema de defesa bastante desenvolvido.

No dia de hoje, o Tribunal de Justiça de Pernambuco convidou duas mulheres negras com atuação dentro e fora do Judiciário para falar sobre diversos aspectos que permeiam a vida das mulheres negras e suas percepções sobre o racismo no passado, presente e futuro.

Nascida em 1946, no Rio Grande do Norte, Inaldete Pinheiro de Andrade veio estudar Enfermagem na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), no final da década de 1960. Foi na leitura que desenvolveu a sua consciência política, o que veio a fortalecer a sua consciência racial iniciada ainda em casa, quando criança. “Existia uma consciência de raça, mas sem discussão. Eu tinha uma consciência social, sabia da opressão, porque na minha adolescência Martin Luther King foi morto, aí já deu aquele estalo, mas foi aqui no Recife, junto com as leituras e essa abertura política. Ali muitos jornais, digamos, de esquerda, que eram chamados ‘a imprensa marrom’, jornais bem pequenos, e neles hora por outra traziam algum ‘recado’ sobre a existência de outros movimentos, como o das mulheres, que já estava começando também”, conta.

O desenvolvimento dessa consciência levou Inaldete Pinheiro a ser uma das fundadoras do Movimento Negro do Recife (MNR), em 1979, com as primeiras reuniões sendo realizadas no apartamento em que morava, no bairro da Boa Vista. “No momento que a gente começou aqui em Recife, começava o movimento das mulheres, dos homossexuais, porque era um Brasil que estava nascendo com a liberdade. A Igreja Católica já estava bem atuante nos movimentos de base, então isso brotou simultaneamente, falando do movimento negro”, lembra.

“A partir daí nunca mais eu particularmente me afastei. Foi só crescendo, veio a literatura, vinham as discussões, vieram as formações nas escolas e universidades, foi muito contínuo porque também cada pessoa que chegava no movimento tinha uma opção de atuação. Uns mais soltos em conversas públicas, outros já ficavam dando outros suportes. Em 1981, fizemos uma proposta do movimento no Norte e Nordeste, então já juntamos militâncias do Pará até a Bahia, e isso fortalecia cada um de nós”, conta Inaldete, que permaneceu no MNR até o final da década de 1980. 

Mesmo não estando vinculada atualmente a nenhuma associação, Inaldete fez da literatura sua principal ferramenta de luta contra o racismo. Em pouco mais de 30 anos, a autora publicou títulos de não-ficção, antologias e poesias, como a coletânea Travessia. Em 2021, ela lançou “Escritos das Escravidões” e “Escritos das Liberdades”, onde traz memórias de vivências pessoais e da militância. “Onde você estiver, você é militante. E assim eu me comporto, onde estou a minha literatura é uma literatura colocada, posta”, afirma.

Com a produção de textos para o público infantojuvenil desde o final dos anos 1980, escreveu livros como Uma Aventura do Velho Baobá, Cinco cantigas para você contar e Pai Adão era Nagô. “As crianças são as primeiras a serem atingidas com o racismo, às vezes até dentro de casa. Esticando o cabelo, os apelidos de ‘moreninha’, pra ter o cabelo bom tem que espichar. Então exatamente o que eu tento fazer é conversar com elas, além de botar muito a nossa cultura em evidência para essa criança que não tem informação. E se tem, acrescentar para que elas possam contar a outras pessoas ou se fortalecer”, pontua.

Além de uma vida dedicada ao trabalho como funcionária pública, Inaldete fez Mestrado em Serviço Social pela UFPE e sempre defendeu o ensino de História da África e da Cultura Afro-pernambucana nas escolas. Ela acredita na educação como o principal caminho para a valorização da cultura negra e para que a discussão não fique apenas em torno das datas comemorativas. “Eu acho que a história da África, se fosse instituída nas escolas, já seria um bom tamanho, porque quem escuta, seja no ensino fundamental ou superior, vai divulgando e vai sedimentando uma discussão em torno dessa história que não foi contada. Até conseguir reverter as estatísticas como de trabalho, o lugar que o negro está na sociedade brasileira, as condições de vida, as perseguições policiais. Isso são histórias que já deveriam estar no nosso cotidiano e que pouco a pouco vão fomentando uma sociedade justa, onde pretos e brancos e indígenas vivam com respeito”, defende.

Presença ativa também no Movimento Feminista em Pernambuco, Inaldete relembra as condições enfrentadas pelas mulheres negras na década de 1990, com numerosos casos de esterilização, identificada por ela como uma política de estado que havia em todo o país. “Naquela época era grande o índice de mulheres negras esterilizadas, eram feitas ligaduras de trompas. Era um projeto político para que não nascessem mais crianças negras. Também havia a morte das crianças de rua e poucas pessoas tinham voz para serem ouvidas. Nesse ínterim, o Ministério Público, através da promotora Bernardete Azevedo, criou o GT Racismo, e foi quando nós tínhamos uma referência a quem procurar, as pessoas dos terreiros de candomblé, os quilombolas tinham a quem recorrer. Foi uma guinada”.

“A partir daí outros estados formaram também os seus GTs de Racismo, vieram as cotas dentro das instituições Jurídicas, eu já participei de algumas bancas de autoidentificação racial e isso não existia antes. É preciso uma ou duas pessoas que passem a fazer esse movimento, e passem a sensibilizar e contagiar outras pessoas para ampliar essa mudança interna”, diz a ativista em referência à participação das instituições na causa.

A assistente social Margareth Bezerra, que integra o GT Equidade Racial no TJPE

O Judiciário na luta contra o racismo e pela equidade racial

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) lançou, em 2022, o Pacto Nacional do Judiciário pela Equidade Racial. Além do diálogo com os movimentos sociais organizados, o Pacto prevê também, em seus quatro eixos de atuação, a promoção da equidade racial no Poder Judiciário e a desarticulação do racismo institucional.
No contexto da responsabilidade das instituições no combate ao racismo, o TJPE constituiu, no final de 2022, o Grupo de Trabalho Equidade Racial e Combate ao Racismo e suas Interseccionalidades. O GT foi formado, sobretudo, por mulheres negras, as quais, de acordo com dados do Censo do Poder Judiciário, estavam sub-representadas nos tribunais brasileiros, se comparado à sua presença na sociedade.

Atuando como uma das integrantes do GT Equidade Racial, a assistente social Margareth Bezerra acredita que o CNJ, ao perseguir um diagnóstico aproximado do perfil etnicorracial dos tribunais e propor o Pacto, ao tempo em que institui o Fórum Nacional do Poder Judiciário para a Equidade Racial (Fonaer), “cumpre preceitos legais, adere a agendas internacionais e, também, parece ouvir Clarice Lispector no conto Mineirinho: ‘uma justiça que se olhasse a si própria, e que visse que nós todos, lama viva, somos escuros, e por isso nem mesmo a maldade de um homem pode ser entregue à maldade de outro homem."

Desde a sua implantação, o GT realizou reuniões semanais e posteriormente deu início a uma agenda de atividades que consistiram em videoconferência com lideranças do movimento negro, de religiões afrobrasileiras, de grupos de estudo sobre a temática do racismo, além de organismos governamentais; apresentação ao público interno do TJPE; e por fim uma audiência pública para ouvir os povos negros e indígenas, que foi realizada no Tribunal do Júri de Olinda, no último mês de maio. Na ocasião, entre outras abordagens, puderam ser ouvidas críticas acerca do perfilamento racial e das práticas preconceituosas que cerceiam a liberdade religiosa nos terreiros.

“A trajetória do GT, bem como do próprio Fonaer, traz pistas de que o Poder Judiciário, ainda que muito lentamente, está em transformação e busca a participação social qualificada. Sem dúvida, há contradições e o tempo das instituições não corresponde ao tempo da vida, mas com essas atividades em conjunto com a sociedade o TJPE deu um passo significativo na direção de reconhecer demandas relativas ao enfrentamento do racismo”, ressalta Margareth.

Com a conclusão das atividades do Grupo de Trabalho, um importante passo foi dado com o encaminhamento da minuta do texto da Política Judiciária Estadual de Equidade Racial e Combate ao Racismo do TJPE. O documento vai ser analisado e votado pelo Tribunal Pleno da Justiça estadual.

“O processo histórico brasileiro exige uma justiça de reparação às pessoas afro-brasileiras e indígenas, tanto pelo legado nefasto da escravidão quanto pela realidade dos nossos dias, que atualiza o racismo em novos contextos - como nos algoritmos das mais variadas redes sociais que, segundo pesquisas já amplamente divulgadas, privilegiam conteúdos de influencers brancas/os, enquanto associam negras e negros a termos negativos. O racismo (em suas dimensões intersubjetivas, institucionais e estruturais) se mostra uma categoria crítica para compreensão de nossa formação socioeconômica e político-cultural”, acrescenta Margareth Bezerra.

Ela fala não apenas como a mulher que atua em uma instituição que tem caminhado ao encontro das causas raciais, como também desenvolve ações e é reconhecida para além do âmbito do Judiciário. Um exemplo disso é sua participação como ministrante no curso “Enfrentamento ao Racismo no Poder Judiciário: subsídios para a construção de Práticas Antirracistas na Prestação Jurisdicional”, originalmente desenvolvido no TJPE pela assistente social que também compõe o GT, Tanany Frederico. A capacitação será ofertada entre os dias 26 e 28 de julho pela Escola Judicial do Tribunal de Justiça do Amapá (TJAP). Em seguida, no dia 29 de julho, Margareth será homenageada na XIV Caminhada de Oxum, organizada pelo Movimento Negro Unificado (MNU), com concentração às 14h no Parque Municipal de Camaragibe.

“Enquanto mulher negra sinto na pele (e na alma) os desafios impostos por uma sociedade marcada pelo patriarcado e pelo racismo estrutural. Como assistente social do judiciário estadual, ciente dos limites e potencialidades do papel articulador das equipes do Apoio Especializado, observo com razão pessimista e vontade otimista os desdobramentos de nosso trabalho”, revela Margareth.

Para a pioneira Inaldete Pinheiro, ainda há um longo caminho a ser percorrido. “Primeiro é saber que a luta não parou, que tem muita coisa pra gente contribuir. Então a literatura é a minha contribuição. Também existe um leque de possibilidades por onde você for, sobretudo, nós mulheres negras, que permanecemos num índice de analfabetismo cruel. Se a gente tiver como estimular cada mulher dessa que não teve oportunidade e puder botar as crianças negras para estudar, não deixar nenhuma criança fora da escola é fundamental. Com a cultura você desbrava o mundo”, conclui.
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Texto: Amanda Machado I Ascom TJPE
Fotos: Cortesia