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Uma história de adoção: “Hoje, não consigo pensar em Artur sem ser o meu filho"



Márcia Passos, agora mãe do menino Artur, na orla de Jaboatão dos Guararapes 

“Vamos rápido, ligeiro”, exprimiu Artur, entusiasmado pela primeira vez que conseguiu andar de bicicleta e, diga-se de passagem, sem rodinha. Mesmo que tenha ralado o joelho nessa aventura – como acontece com 99% das pessoas que tentam se equilibrar em duas rodas (embora não existam estatísticas) – uma coisa é certa: pedalar é o novo hobbie do adolescente de 15 anos. Artur também gosta de jogar bola e assistir a filmes de ação/aventura. Ele conhece tudo de animes japonês e vídeos de rap/trap. Mas, a sua grande paixão é desenhar e pintar. O adolescente é uma pessoa com deficiência intelectual.

Quem contou isso tudo foi Márcia Passos, madrinha de Artur no Programa Anjo da Guarda Jaboatão, ação da Vara da Infância e Juventude da Comarca de Jaboatão dos Guararapes/TJPE, e agora, sua mãe. A adotante, de 51 anos, é professora e Analista de Sistema da Secretaria de Tecnologia da Informação e Comunicação (Setic) do TJPE. Em março de 2024, Márcia adotou Artur. Essa adoção é monoparental, tendo em vista que ela é solteira.

Na infância, ele foi entregue aos cuidados de vizinhos da família. Na pré-adolescência, foi para o acolhimento institucional por meio do Conselho Tutelar. Durante o tempo que ficou no acolhimento institucional, restaram infrutíferas as intervenções da rede de proteção e do Poder Judiciário visando a sua reintegração familiar, sendo decretada a destituição do poder familiar dos genitores e determinada sua inscrição no Sistema Nacional de Adoção.

Quando estava no acolhimento, existiu a possibilidade de uma professora da sua escola se cadastrar como a sua madrinha do Programa Anjo da Guarda Jaboatão, mas a tentativa não teve êxito, visto que a interessada morava muito longe. Assim, a equipe da Vara da Infância e Juventude da Comarca de Jaboatão dos Guararapes teve muita dificuldade na busca de apadrinhamento e de encontrar pretendentes para a adoção de Artur, devido ao seu perfil (foram realizadas buscas por um ano). Desse modo, o adolescente viveu em duas instituições de acolhimento, entre 2022 e 2024, até o dia em que pôde construir uma nova história com Márcia, ganhando uma nova família e encontrando um verdadeiro lar.

“A minha convivência com Artur começou quando fui ao acolhimento institucional, onde ele vivia, fazer um trabalho voluntário como madrinha prestadora de serviços. Então, o nosso primeiro contato aconteceu junto aos outros acolhidos. Numa dessas ocasiões, Artur demonstrou interesse pela minha presença, causando surpresa em todos da casa, já que, a princípio, ele é bem tímido – acho que por causa dos traumas vividos. Diante da sua reação, também me interessei nessa aproximação e dei entrada para ser a sua madrinha”, contou Márcia Passos.

O apadrinhamento ocorreu em junho de 2023. Em agosto, Márcia e Artur começaram a estreitar, ainda mais, os laços. “A princípio, passamos o dia todo juntos. Com o passar do tempo, esses momentos foram se alongando. Até o dia que ele pôde dormir na minha casa, depois ficou o final de semana. Na segunda-feira, eu o deixava na escola e alguém do acolhimento ia buscá-lo.” Emocionada, Márcia conta que, facilmente, decidiu que queria adotar Artur.

Márcia disse que nunca pensou em gerar um filho, mas que sempre nutriu o desejo de adoção. Resolveu primeiro apadrinhar, para dar oportunidade de ser um suporte para uma criança ou adolescente, e também com a possibilidade de adotar um(a) filho(a). “Eu ainda cheguei aos 51 anos para concretizar esse sonho por questão de insegurança. Mas também, porque a minha proposta sempre foi ter todas as condições possíveis – emocionais, financeiras e físicas – de dar esse apoio a alguém. Tudo isso, logicamente, baseado no amor, sentimento incondicional”, refletiu. Dessa forma, a adotante enfatiza que hoje se sente pronta para ser mãe. “A questão consanguínea não tem importância para mim. Sei amar as pessoas, independentemente dessa questão mínima, que é ser do mesmo sangue. ”

A professora e servidora do TJPE refletiu sobre como o desejo de se tornar mãe amadureceu ao longo dos anos. “Durante muito tempo tive a fantasia de que, de repente, meu filho poderia surgir naquelas coisas que acontecem, de alguém, que não tem condições, deixar um filho em uma cestinha. Mas, com o passar dos anos, mudei a ideia de adotar um bebê. Comecei a nutrir a vontade de, realmente, adotar uma criança mais velha, um adolescente. De fazer o que se chama de adoção tardia. Isso foi influenciado pelo meu momento também, aos 51 anos não me vejo dando o meu melhor a um recém-nascido ou a uma criança pequenininha. Então, hoje em dia, Artur é o meu filho perfeito."

Até a adoção ter se tornado definitiva, a mãe e o filho vivenciaram um período, determinado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), por estágio de convivência. Todavia, de acordo com a perspectiva da adotante, desde que eles começaram a conviver diariamente não considerava estar em um estágio de convivência com o filho, mas na construção da convivência em si. “Não tem essa questão de estágio de convivência, não dá pra pensar em um filho que tá passando por um estágio e que eu vou ver se ele vai ser ou não o meu filho”, fazendo questão de evidenciar que, para ela, a decisão de ser mãe de Artur é algo irreversível. “Eu descrevo o relacionamento da gente como sendo, cada vez mais, de mãe e filho. Ainda estou estudando muito sobre o processo de adoção – de adotados e de adotantes, mas é interessante ver a evolução do que estamos construindo. Hoje, tenho consciência de que estamos amadurecendo o nosso relacionamento. Para mim, é algo bem empolgante, da mesma forma que desafiante.”

Márcia destacou como foi o início da convivência entre ela e o filho. “No início foi bem desafiador, principalmente para mim, que nunca tinha sido mãe, me tornei recentemente. Eu tinha algumas preocupações que hoje vejo que foram criadas por mim. Atualmente, percebo o quanto eu e Artur temos um relacionamento leve, baseado em um senso de humor mútuo. Acredito que consegui demonstrar para ele essa suavidade, de maneira que ele não sentiu as minhas preocupações no começo. Artur é um companheiro, me ajuda, dá opinião onde pode, como, por exemplo, o que iremos fazer, ir, comer…decidimos juntos essas coisas.”

Questionada sobre como tem sido a aproximação de Artur com a sua família, a adotante ressaltou que, depois de se tornar mãe, a forma como os parentes acolheram o seu filho é a parte da história que mais a emociona. “Eu fui a primeira da família a adotar, e os meus familiares seguiram à risca a minha impressão do que é ser uma família acolhedora. Vejo que não há diferença no tratamento que dão para o meu filho dos demais integrantes da família. Hoje, Artur é o primo, o sobrinho, o neto…é um membro da família tão querido quanto os outros.”

Quis saber quais são as expectativas de Márcia com essa nova etapa da sua vida, de ser mãe. “Tenho as mesmas que toda mãe tem para o seu filho! Vejo em Artur, por exemplo, um ótimo profissional de desenho. No tempo livre, o que o meu filho mais faz é desenhar e pintar, inclusive quando estou de home-office ele “trabalha” comigo, fazendo seus desenhos e pinturas. Artur desenha muito bem, quem sabe, no futuro, consiga ser encaminhado para um trabalho. Conheço empresas que abarcam pessoas com deficiência e aproveitam seus talentos. Então, para mim, hoje esse é o seu talento mais evidente, mas podemos descobrir outros. No entanto, sei que também preciso ajudá-lo a suprir algumas necessidades básicas, como ser alfabetizado e desenvolver, ainda mais, outras questões cognitivas, que devido a sua condição social foram negligenciadas.”


Um dos trabalhos de Artur, que faz pinturas e desenhos no tempo livre 

Márcia relatou que a primeira expectativa, em relação ao desenvolvimento do filho, já pôde ser alcançada. “Gosto muito de pedalar, sou adepta da bicicleta, inclusive, vou pedalando para o trabalho. Então, sabia que se Artur aprendesse a andar de bicicleta seria um meio de convívio bem importante. Nesta aprendizagem, emprestei a minha bicicleta e depois comprei uma bike para ele. Então, em um mês, o meu filho estava andando de bicicleta, algo que não sabia anteriormente por falta de oportunidade. Essa foi uma das expectativas que já foi superada, tenho outras, como incentivá-lo à leitura”, ressaltou Márcia com empolgação ao falar do desenvolvimento do filho.

A mãe de Artur também ressaltou que se preocupa, em todos os sentidos, de adaptar a vida da família às condições do filho, dando o exemplo, mais uma vez, na relação com o ciclismo, que considera uma ótima opção para estreitar os laços familiares. “Artur ter aprendido a andar de bicicleta era algo muito importante para mim, porém, caso ele não conseguisse, estava planejando mandar fazer uma carrocinha, extensão ou utilizar aquelas bicicletas que têm dois assentos… andar de bicicleta ele não iria deixar, iríamos nos adaptar às suas condições".

Nas férias, mãe e filho foram passar uns dias na casa dos avós, construindo memórias e ressignificando momentos. O lugar tem uma área grande na frente e a residência fica próxima a uma pracinha. Nesses espaços, Artur ficou pedalando de um lado para o outro. A princípio, o rapaz contou com a ajuda de rodinhas extras, mas, com o tempo, os aparelhos não resistiram aos impactos do “entusiasta a ciclista”, e terminaram quebrando rapidamente. Mas, isso não foi um problema para Artur. Aos poucos, o adolescente desenvolveu segurança e persistiu até se equilibrar em duas rodas. “Na bicicleta, Artur pôde sentir a incrível sensação de liberdade, empoderamento e autonomia, porém mais que isso, ele notou que foi capaz de aprender a andar de bicicleta! Para mim, foi uma grande emoção. Artur ficou me chamando: “Olha, eu consigo! ” Hoje, mãe e filho compartilham o mesmo amor por pedalar e traçam juntos o caminho da vida.


Artur, a mãe Márcia, e a avó Lucineta (Lu) 

27 de março de 2024: o dia da audiência da adoção 

A audiência da adoção de Artur foi conduzida pela juíza titular da Vara da Infância e Juventude de Jaboatão dos Guararapes, Christiana Caribé; e contou com a presença da coordenadora do Programa de Apadrinhamento do TJPE, a assistente social Carla Novaes; da psicóloga da equipe técnica do acolhimento institucional, Larissa Ribeiro; e da promotora do Ministério Público de Pernambuco (MPPE), Diliani Mendes Ramos.

A juíza enfatizou que o Programa Anjo da Guarda Jaboatão foi criado em 2015. A iniciativa já beneficiou mais de 700 crianças e adolescentes nas suas três modalidades (profissional, financeiro e afetivo), e proporcionou a concretização de 16 adoções tardias. No entanto, disse que a adoção não é o foco do Anjo da Guarda Jaboatão, mas sim o de garantir um apoio, de diferentes formas, às crianças e adolescentes. 

“Os apadrinhamentos e ‘amadrinhamentos’ não burlam o Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento, porque essas crianças e adolescentes mais velhos, que estão sendo disponibilizados para vinculação afetiva, são os que têm um perfil menos procurado para adoção. Assim, nesses anos do programa, poucos foram adotados, porque não é esse o objetivo. Porém, ele possibilita uma convivência comunitária. Se dessa convivência surgir uma adoção, ficamos felizes que tenha acontecido esse encontro”, ressaltou Christiana Caribé. 

Dessa maneira, conhecendo a história de Artur, ciente dos relatos da sua nova vida ao lado de Márcia – desde que ela se tornou a sua madrinha do Programa Anjo da Guarda Jaboatão até o estágio de convivência para adoção – a juíza perguntou a Carla Novaes e a Larissa Ribeiro, profissionais que acompanharam o adolescente e que há mais de um ano procuravam pretendentes para apadrinhamento e adoção, se elas perceberam mudanças benéficas no comportamento do rapaz. Ambas afirmaram o progresso no seu desenvolvimento e que acreditam que a adoção é uma grande oportunidade para a vida de Artur, já que Márcia é muito comprometida com a sua maternagem. 

Para ter mais autonomia, o adolescente tem acesso a profissionais que auxiliam o seu desenvolvimento, como fonoaudiólogo, psicopedagogo e um especialista em educação especial. Nos últimos meses, Márcia tem acompanhado cada uma das suas conquistas. “Ele tinha dificuldade de socialização e em realizar algumas atividades do dia a dia. É impressionante o quanto Artur evoluiu”, destacou Carla Novaes.
Na audiência, Márcia falou sobre a afinidade que teve com Artur. “Filho a gente não escolhe. Artur que veio, ele que me escolheu como a sua mãe!” No mesmo dia, Larissa Ribeiro afirmou: “O vínculo que foi criado entre Márcia e Artur foi muito natural. Ficamos felizes de ver que ele teria a oportunidade de ter uma família, já que não víamos essa possibilidade com a sua família biológica. Nós pensávamos ‘Como será o futuro de Artur?’... Até que Márcia apareceu”. 

Christiana Caribé pontuou alguns critérios que a fez considerar Márcia apta a adotar o adolescente. “Entre eles existe vinculação afetiva, um afeto que surgiu espontaneamente. Além disso, Márcia demonstra ser uma pessoa idônea, que tem a possibilidade de dar todo um suporte familiar a Artur. Ela tem um interesse forte em maternar, pois desejava muito ter um filho. Logo, tem um preparo emocional e financeiro para lidar com todas as necessidades de Artur, demonstrando um compromisso de investir no seu desenvolvimento, pois acredita nas suas potencialidades e valoriza as suas conquistas, dentro do que ele consegue fazer. Isso tudo é muito importante! Assim, todos os requisitos legais para adoção foram preenchidos”. A magistrada também ponderou sobre o fato da adotante ter um trabalho flexível, o que viabiliza e facilita que ela acompanhe o progresso do filho, estando sempre presente na vida de Artur. 

Para finalizar, a juíza refletiu sobre o sentimento de ter feito parte do surgimento dessa nova família. “Uma história como essa de adoção é a parte mais linda de um trabalho de um(a) juiz(a) da infância. No ofício, não é fácil ter que lidar, muitas vezes, com casos de crianças que sofreram perdas que foram vítimas de violência e de abandono. Então, quando a gente consegue ressignificar uma vida, transformar o futuro de alguém positivamente, garantindo que uma criança ou um adolescente passe a ter uma família protetora, que vai lhe proporcionar amor, afeto e um desenvolvimento saudável, é a parte mais gratificante do nosso trabalho. Conseguimos esquecer algumas dores que presenciamos e sofremos juntos, e podemos sorrir com eles, agradecendo a Deus por estar na posição de ajudá-los a terem boas famílias”, destacou Christiana Caribé. 

Artur estava presente na audiência que deu início a um novo capítulo da sua história. O adolescente foi ouvido pela juíza e pela promotora do MPPE, Diliani Mendes Ramos. Artur respondeu às perguntas de Christiana, que explicou para o adolescente que adoção é quando “um filho nasce do coração de uma mãe”.  Algumas perguntas realizadas pela magistrada foram:  Você está feliz morando com a Márcia? -Estou. -Você quer ser adotado por ela? -Quero, disse Artur, que agora tem Passos acrescentado ao seu sobrenome.


Larissa Ribeiro, Márcia Passos, Artur Passos, Diliane Mendes Ramos, Christiana Caribé e Carla Novaes

“Gostaria de agradecer e parabenizar toda a equipe da Vara da Infância de Jaboatão dos Guararapes, liderada pela juíza Christiana Caribé. Este lugar realiza um trabalho substancial de acolhimento. Além disso, preciso dizer para as pessoas que também tem o desejo de adotar que o processo não é fácil, então não irei romantizar. Mas, se eu posso deixar um recado é: se preparem! Eu fiz cursos e tenho apoio psicológico para me ajudar.  A adoção é baseada no amor. A autora Bell Hooks dizia que ‘o amor é definido pela ação’. Então conheçam todo o processo da adoção, pois se você ama você tem que agir”, finalizou Márcia Passos.

Deseja saber mais sobre os Programas de Apadrinhamento do TJPE? Acesse o link: https://portal.tjpe.jus.br/web/infancia-e-juventude/apadrinhamento
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Texto: Carolina Cerqueira  | Ascom TJPE
Fotos: Cortesia