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Seletividade alimentar em pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA)


 

A Organização Mundial da Saúde (OMS) define o Transtorno do Espectro Autista (TEA) como "uma série de condições que envolvem algum grau de comprometimento no comportamento social, comunicação e linguagem, além de interesses e atividades restritas e repetitivas". Nesta definição fica estabelecido, pois, que autismo não é doença. mas um jeito singular de ser e estar no mundo, a despeito do quanto a desinformação ainda produz socialmente discriminação, constrangimento e dor às pessoas com estas condições, bem como às suas famílias e núcleos de convivência.

Os sentidos do corpo humano são responsáveis, em conjunto, por lhe fornecerem as informações (ou expressões) do ambiente em que se situa. Além dos cinco sentidos tão conhecidos - a visão, a audição, o tato, o paladar e o olfato - existem outros dois, internos - o vestibular e o proprioceptivo; estes últimos são responsáveis, respectivamente, por transmitir a estruturas do ouvido interno as informações relacionadas ao equilíbrio e ao movimento, e a situação do corpo em relação ao espaço por meio dos músculos e tendões. Nas pessoas com TEA há uma desordem no processamento sensorial, que se traduz, ao final, neste jeito singular de processar e reagir aos estímulos e que se manifesta em diferentes graus.

Seletividade Alimentar (S.A.)

O que é?

A seletividade alimentar se caracteriza pela recusa do indivíduo em experimentar alimentos novos ou restringir a aceitação alimentar a poucas opções. Acomete pessoas a partir da infância e é possível que avance até a fase adulta, a depender de como e quando seja detectada, das peculiaridades de sua manifestação e de prováveis danos percebidos pelo próprio sujeito e por outros do seu entorno de convivência. Em alguns indivíduos a seletividade alimentar é um dos sintomas que pode, em conjunto com outros, nortear as investigações diagnósticas para a confirmação de que se encontram no espectro autista, principalmente quando a seletividade se estende a outras ações, como não conseguir realizar as refeições em horários e locais diferentes do habitual ou apresentar resistência ao uso de pratos e talheres novos. Neste caso, é inestimável a atuação conjunta do (a) nutricionista com os demais profissionais da equipe de cuidados e, sobretudo, com as famílias, visando ao manejo das dificuldades e à obtenção das melhores estratégias para a otimização da qualidade de vida.

Como se apresenta?

A seletividade alimentar advém de transtornos ligados ao processamento sensorial do indivíduo, que repercutem em suas reações quanto à textura, à consistência, à cor, ao sabor e ao odor, restringindo o repertório de alimentos aceitos para consumir. Além das restrições devidas às desordens do processamento sensorial, há também alterações comportamentais ligadas à (pouca) flexibilização mental na rotina de alimentação, que levam à seletividade alimentar em TEA: rigidez de horários e locais para se alimentar (como descrito antes), fixação por marcas comerciais pela aparência e tipo de produto etc. Pode ser exemplo disto a preferência constante por certos alimentos embalados comercialmente (previsibilidade) em contraponto à aceitação de alimentos in natura (diversidade de tamanho, cor e aparência das frutas).

Sendo assim, dentro da seletividade alimentar em pessoas com TEA, há as que exibem hiper-reatividade à textura e aceitam somente alimentos macios, cremosos, molhados; outras, hiporreatividade, quando precisam de sabores fortes e somente conseguem comer alimentos crocantes, secos, picantes, etc.

Há riscos?

Há casos em que o repertório alimentar é bem restrito ou mesmo o indivíduo apresenta um comportamento de recusa ao consumo de muitos alimentos ou grupos inteiros, ocasionando riscos para a saúde orgânica propriamente dita. Se a seletividade alimentar assim considerada ocorrer em idades precoces, pode levar à má nutrição sob forma de anemia, hipovitaminoses, falta de energia, baixo peso, baixa imunidade e vulnerabilidade para infecções e para outros agravos em acometimento ao desenvolvimento motor, cognitivo e do crescimento, doenças gastrointestinais etc.

Se a restrição de consistência perdurar, pode comprometer o desenvolvimento da musculatura oral (inclusive língua e bochechas), da deglutição e da fala, consequentemente. Se a seletividade estiver ligada à exclusão de muitos alimentos nutritivos com predominância no consumo de alimentos processados e ultraprocessados, é previsível a ocorrência de sobrepeso e obesidade, condições de risco para outras enfermidades como diabetes, hipertensão arterial e hiperlipidemias.

A seletividade alimentar pode interferir nas relações sociais de crianças e jovens com a exclusão de festas e refeições em grupo, restrição de experiências gastronômicas de outras culturas, estigmas e outros componentes estressantes que podem ocasionar ou reforçar a baixa autoestima e dificultar mais ainda o gerenciamento por parte da família e cuidadores.

O que fazer?

O primeiro passo na esteira da pesquisa diagnóstica no tocante ao comportamento alimentar em TEA, é avaliar eventos pregressos na história de vida que possam "explicar" a seletividade: houve DRGE (Doença do Refluxo Gastro Esofágico)? Intolerâncias ou alergias alimentares? Constipação intestinal crônica? Alterações de paladar consequentes ao uso de certos medicamentos ou afecções bucais? Traumatismos bucais ou faciais que levaram a mudanças importantes no padrão de aceitação alimentar? Em caso positivo, tais condições devem ser tratadas antes mesmo de implementar estratégias de manejo da seletividade alimentar no contexto dos TEA.

A seguir, uma anamnese alimentar acurada é necessária: como foram as experiências na amamentação e na transição para a introdução de alimentos novos? Como foi e como é, atualmente, a afetividade no ambiente familiar às refeições? E no convívio social? Demonstra preferência ou recusa por alimentos específicos? Quais? Como se dá a apresentação da comida por parte dos cuidadores diretos? Qual a duração das refeições? Quem são suas companhias às refeições?

Uma vez firmado um "retrato" da realidade, é necessário começar a lidar com a seletividade alimentar no indivíduo do ponto de vista comportamental, incentivando-o a ter um relacionamento amigável com a comida. Isto inclui renovar de forma lúdica o ambiente e o momento da refeição, envolver positiva e afetivamente as pessoas, bem como escolher criteriosamente as estratégias de intervenção; quanto mais cedo forem implementadas, mais efetivo será o tratamento.

Em respeito às singularidades, as abordagens e estratégias de intervenção requerem tempo, criatividade, paciência, respeito, dedicação e constância, além das técnicas, e todos os atores serão partícipes. A experimentação de novos alimentos é, talvez, o fator mais desafiador. A introdução deve ser gradual, dando tempo para que a criança se acostume com a aparência e a textura, principalmente.

Como intervir?

O TEA é vastamente estudado, hoje, entrelaçando inúmeras áreas de conhecimento - pedagogia, sociologia, pediatria, neurologia, psiconeuromotricidade, psicologia, psiquiatria, fonoaudiologia, terapia ocupacional, odontologia, educação física, nutrição etc. Desta interação resultam técnicas aplicadas por meio de protocolos e rotinas fundamentadas em evidências científicas, algumas delas nem sempre acessíveis ao público mais carente.

Uma estratégia simples que emergiu das leituras que lastrearam esta matéria é trazida aqui, para ilustrar os passos da aproximação de alimentos novos: a "escalada do comer", aplicável em consonância com perfis específicos das crianças com TEA previamente identificados por especialistas que os acompanharem. (*) (**)

Escalada do comer

1 - Tolerar

O primeiro passo da escalada do comer permite que a criança fique próxima do alimento sem sentir qualquer incômodo ou desconforto. Isso pode ser feito apenas visualmente, ou até mesmo deixando o alimento perto, ou já no prato. Com isso, a criança entende e aprende a tolerar determinado alimento.

2 - Interagir

Já na próxima etapa a criança é estimulada a sentir interesse por esse alimento, começando a interagir com ele aos poucos, aceitando tocar, seja com a mão ou com o garfo. Uma ótima dica para esse passo é adicionar o alimento nas brincadeiras e interesses da criança, por exemplo, pedindo para ela alimentar uma boneca com isso.

3 - Cheirar

Seguindo a etapa de interação com o alimento, a criança se aproxima ainda mais e sente o seu cheiro, fortalecendo o vínculo com ele e permitindo que o cérebro crie a conexão entre o olfato e a visão.

4 - Tocar

Na próxima etapa ela aceita pegar o alimento com as mãos, mexendo nele de forma natural. Talvez os passos 2, 3 e 4 possam acontecer juntos, ou talvez cada etapa seja feita de uma forma mais lenta, dependendo do ritmo e interesse da criança.

5 - Provar

No quinto passo a criança coloca o alimento na boca, se familiarizando com suas características no paladar, como sabor, textura e temperatura. Pode ser que ela cuspa, mastigue, morda ou apenas passe a língua.

6 - Comer

Por fim, a escalada do comer termina quando a criança aceita comer, de fato, o alimento, mastigando e o engolindo. Em seguida, ele já passa a fazer parte da dieta e rotina, podendo ser inserido em diferentes preparos e texturas.

Uma dica valiosa para as famílias: em todas as etapas da escalada do comer é importante existir o estímulo de curiosidade da pessoa autista, perguntando sobre o que ela acha, qual deveria ser o cheiro, o que ela pensa da textura etc. Isso ajuda a tornar o processo mais natural e orgânico. Fonte da matéria: Escalada do comer e a alimentação de crianças com autismo ( genialcare.com.br)

Quanto a estratégias de intervenção dietética mais específicas, algumas pesquisas trabalham com hipóteses de benefícios reais com relação a excluir o glúten e a caseína (proteína de elevado valor biológico contida no leite), suplementar vitaminas e minerais, dentre outras. É prudente, contudo, aguardar resultados consolidados pela Ciência, para não incorrer em ilusões ou mesmo ser alvo de fake news, tão correntes hoje em dia.

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Texto: Solange Carvalho Paraíso | Diretoria de Saúde do TJPE