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Texto Histórico 4
PROCESSO 513 | ANO: 1936 | JUIZ: RODOLFO AURELIANO
INFÂNCIA ROUBADA
Pequena, franzina e pálida; a adolescente Rafaela chegou um pouco assustada ao manicômio judiciário, mas logo se adaptou à rotina do local. Foi internada por decisão do juiz, em ocasião que esteve no Juizado de Menores, levada pela irmã, que a acusava de roubo. Diante do atordoamento da menina, o juiz determinou sua internação e solicitou que fosse submetida a exame psiquiátrico.
Rafaela não se queixava da internação, brincava com as outras adolescentes na enfermaria. É certo que às vezes elas se desentendiam, mas depois faziam as pazes e voltavam às brincadeiras e conversações. A jovem adorava ser tratada pelas enfermeiras, pois até então nunca havia experimentado a sensação de ser cuidada. Apegou-se à enfermeira Carla, desejava morar com ela, quando saísse dali.
Os cuidados das outras enfermeiras e o afeto de Carla pareciam um sonho. Rafaela evitava pensar em sua vida, pois as lágrimas teimavam em lhe desobedecer, encharcando-lhe o rosto. Sentia falta da mãe, mas não tinha grandes lembranças dela. Morrera quando a menina ainda tinha sete anos de idade, por causa das pancadas e dos maus tratos do marido: seu pai. Deste não sentia falta. Quando lembrava dele, só recordava surras e palavrões. Depois que a mãe de Rafaela morreu, casou-se com outra mulher tão bruta quanto ele. Os dois se revezavam em bater na menina, com ou sem motivo.
As surras doíam de uma forma que ela não sabia explicar. O corpo acostumara-se as pancadas, mas sua alma ansiava o fim daquela situação. Passou a se esquivar das pessoas mais próximas, pois não esperava que nada de bom pudesse vir delas. Rafaela não queria ter o mesmo destino da mãe. Desejava ir à escola, aprender a ler e brincar com outras crianças.
Ao completar nove anos, resolveu que sairia da casa do pai. A menina passou a escrever para uma de suas irmãs mais velha que morava na capital, Gizely. Pediu para ir morar com ela; a irmã permitiu. Chegou à casa de Gizely cheia de esperanças em uma vida diferente, mas o velho destino novamente se repetiu. A irmã reservou-lhe as tarefas domésticas, passava seus dias entre pratos, panelas e outros afazeres da cozinha. Não podia sair, nunca ia à missa, não freqüentava a escola e continuava a apanhar, desta vez, da irmã e do cunhado.
Era tratada como um bicho pulguento, para o qual se reserva o asco e o entojo. Não tinha direito a roupas ou calçados novos, só usava o que sobrava da irmã ou era descartado por alguém. No começo, Gizely e o marido a escondiam dos vizinhos e dos amigos. A menina não freqüentava outros cômodos da casa, além de seu minúsculo quarto aos fundos, saindo deste apenas para o quintal e a cozinha. Com o tempo, seus verdugos relaxaram nos cuidados em escondê-la, deixando visível a algumas vizinhas a presença da “irmã perturbada” e “amparada pela caridade do casal”.
A negligência e os maus tratos de Gizely e seu marido, em relação a Rafaela, saltavam aos olhos. Algumas vizinhas passaram a incentivar a menina a fazer pequenas retiradas de dinheiro da carteira do cunhado, para comprar roupas e bugigangas, como se fosse algo natural, como pagamento por seus serviços. Rafaela não conhecia o valor do dinheiro, passou a pegar o dinheiro e foi uma dessas situações que motivou Gizely a mover um processo contra a menina, com a acusação de que esta teria lhe roubado oitocentos réis.
Quatro anos depois, quando Rafaela completou 18 anos, o processo contra ela foi extinto, por ter atingido a maioridade. Dentre os autos processuais, o laudo médico opinava pelo encaminhamento da adolescente a um meio onde possa ser tratada com brandura, onde receba instrução, onde se deixe influenciar por exemplos sadios. Mas, do processo resultou apenas a internação da menina no manicômio judicial, onde, ao menos, permaneceu longe das surras habituais.
A história é baseada em fatos processuais e todos os nomes utilizados são fictícios.
Texto e adaptação: Elaine Viana Vilar