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Texto Histórico 2
PROCESSO 507 | ANO 1936 | JUIZ: RODOLFO AURELIANO
CORREÇÃO
Alcides conseguiu permissão para sair da casa correcional. Iria ao Juizado de Menores, saber se já havia alguma resposta ao ofício do Padre Nogueira sobre sua certidão de nascimento, pois estava às vésperas do alistamento militar. Ansiava pelo documento que lhe asseguraria a existência no mundo, sua estada na vida com pai e mãe, mesmo que estes fossem apenas algumas letras em um papel. Enquanto caminhava em direção ao Fórum, o jovem entretia-se com episódios de sua existência.
Rejeitado pela mãe biológica, foi entregue à professora Maria Poliana com pouco mais de um ano de idade. Sabia que não era seu filho, pois, a cada travessura, sua condição de adotivo era comentada. Permaneceu em sua companhia até completar 6 anos, quando foi internado na Casa de Providência Infantil, na Jaqueira. No orfanato, passou cinco anos. Tinha boas lembranças da casa, gozava dos cuidados das freiras e das amizades com os meninos. Lá, adaptou-se facilmente, pois os moleques estavam mais ou menos na mesma condição. Eram enjeitados, filhos sem pai e mãe. Aos 11 anos, foi desligado da casa. Voltou à companhia da professora e encontrou mais três "irmãos".
O retorno àquele lar deixava-o inseguro. Não tinha boas recordações. Lembrava sempre da revolta que sentia cada vez que apanhava, se bem que não foram muitas. O pior era, sempre que fazia algo que não era do agrado da tutora, ter que ser lembrado de sua situação de estranho ou de beneficiário da caridade dela. Sentia-se culpado por ter sido abandonado. Para ele, era como se não merecesse ter uma mãe de verdade.
Assim que voltou, a professora o matriculou no Colégio São Joaquim, mas ele sentia falta do orfanato, do convívio com os funcionários, as freiras e, sobretudo, os amigos. Os meninos do colégio não o tratavam bem, olhavam-no com desdém e desconfiança. Para ele, os funcionários e diretores também o hostilizavam. "Queriam sempre impor suas vontades, com ordens absurdas", resmungou mentalmente. Sabia se cuidar, sempre soube, pois crescera sozinho, mas era sempre tratado com reservas e desconfianças A revolta o consumia, sentia-se um nada, um ninguém. Só pensava em fugir, mas não permitiam que saísse. Deixava-se dominar pela raiva, transgredia as regras e agredia as pessoas. "Se acham que não sou bom para eles, pois não serei mesmo", brania dentro de si. Acabou expulso por má conduta.
Ingressou em mais três instituições, não se adaptou a elas. As queixas revezavam-se entre a falta de assiduidade e atos irregulares - bebedeira e pequenos furtos. Até ser acusado de roubar uma bicicleta e tentar matar um colega. Os episódios alteraram a professora Maria Poliana, que já havia tentado de tudo para garantir-lhe os estudos. Por fim, restava-lhe procurar um Juiz de Menores, a fim de providenciar a internação de Alcides em um estabelecimento de correção.
O juiz mandou que fossem realizados exames mentais e neurológicos para que se averiguasse a origem do caráter agressivo do menino. A conclusão dos peritos atestava que Alcides é um adolescente comunicativo e extrovertido, mas com traços temperamentais explosivos. "O menor em questão reage bem à demonstração de confiança e possui um acentuado senso de responsabilidade pessoal", afirma o perito. Ainda de acordo com os médicos, Alcides necessitava afastar-se de convivências pouco recomendáveis e ser guiado por um pulso firme que lhe imponha limites e disciplina. Aos doze anos, o menino foi recolhido ao Abrigo 15 de Novembro, onde permanecia à disposição da Justiça.
Afastou o pensamento, pois já estava perto do Fórum. Ao chegar ao Juizado de Menores, soube que seu processo havia sido arquivado em 1940, quando ele já contava com 16 anos. As providências da Justiça não foram suficientes para lhe garantir uma certidão de nascimento. Novamente, sentiu-se um nada, um ninguém. Uma sensação que o perseguia desde pequeno, movendo-lhe internamente forças que se expressavam em uma revolta consigo e com a vida. Mas desta vez, ele não reagiu, não agrediu, apenas sentiu o grande vazio de sua inexistência.
A história é baseada em fatos processuais e todos os nomes utilizados são fictícios.
Texto e adaptação: Elaine Viana Vilar